segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Construindo a credibilidade do PS: Victor Freitas propõe choque económico


Candidato à liderança do PS defende a redução das taxas de IRS e IRC

Reforma fiscal, outro envolvente empresarial e um novo paradigma da despesa pública, são as três vertentes do 'choque económico' que Victor Freitas defende para a Região, na sua moção de estratégia.

O candidato à liderança do PS-M apresenta um conjunto de medidas concretas que passam, sobretudo, pela menor carga fiscal, sobre empresas e trabalhadores, maior fiscalização dos apoios financeiros às empresas e às famílias, nomeadamente a aplicação dos fundos do POSEIMA e medidas de reforço da competitividade.

Na reforma fiscal, propõe ao partido que aprove uma estratégia que passe pelo aproveitamento de todas as competências constitucionais. Ao nível do IRS e do IRC, são propostas medidas que reduzam as taxas e favoreçam a instalação de empresas nos concelhos rurais.

A estratégia do PS-M, se Victor Freitas for eleito líder, passará por propor iniciativas legislativas que corrijam as estratégias de concessão de serviços seguidas pelo Governo Regional.

A diversificação da economia e uma nova política de investimentos públicos, baseada na rentabilidade e nas novas tecnologias, são duas das principais propostas para alterar o modelo económico da Região.

Como é sabido, o PS-Madeira vai realizar o seu congresso no início de Janeiro.

Propostas

Imposto sobre o património das empresas concessionárias de serviço s públicos na RAM.

Contribuição especial para a extracção de inertes.

Receitas do serviço rodoviário destinadas a áreas sociais.

Adaptação da participação variável dos municípios no IRS.

Reduzir ao máximo o IRC. Nas zonas rurais deve ser 7,5%.

Redução de taxas de IRC.

Benefícios para a interioridade.

Dedução à colecta de IRS e IRC de até 35% dos lucros reinvestidos.

Redução das taxas gerais de IRS.

Alteração do regime de taxas de instalação e funcionamento no Centro Internacional de Negócios.

Reforço do apoio à internacionalização das empresas.

Novo modelo de concessão e exploração do CINM.

Novo quadro de financiamento do investimento privado.

Criação de uma rede regional de inovação com participação das associações empresariais.

Estratégia para o destino turístico Madeira e Porto Santo.

Plano de atracção de quadros com networking.

Incentivos à diversificação económica.

domingo, 29 de novembro de 2009

Sejamos claros, directos e frontais: JCG, apoiante de Serrão, foi o melhor líder do PS que o PPD teve. Por isso e só por isso, LFM o apoia tanto!

A actual Direcção do PS não desiste de ser medíocre até ao fim. E Serrão julga beneficiar disso!

É claro e notório que a Direcção de João Carlos Gouveia não está a ser parcial na preparação do Congresso perante as candidaturas em presença.
Esta Direcção, desde o começo, foi um caso de contradição e de incompetência. Deixou o PSD à rédea solta, nas reuniões dos órgãos dos partidos, os ataques à oposição interna substituíam as críticas à política do PSD, uma total ausência nos actos eleitorais deste ano e agora uma descarada falta de imparcialidade em relação aos contendores com exemplos à vista de todos.
Isto tem uma razão muito clara e tem de ser dito: trata-se de disfarçar o vazio de ideias e de propostas da candidatura de Jacinto Serrão, onde estão os que, quanto à incompetência no passado, são os mais notáveis pelo que não souberam fazer no passado. Na verdade, e mais uma vez, essa plêiade de soit disant notáveis, a que se juntam alguns com complexos de notoriedade, vulgo complexo de pobre, impróprio de um partido de esquerda, não causa surpresa: volta a demonstrar a total incompetência com que sempre dirigiram o partido. E, descaradamente, quer voltar a dirigi-lo. Para quê?, pergunta-se. Ninguém sabem nem eles sabem.

Actual Direcção do PS não quer que as futuras direcções cometam os erros que ela própria cometeu. É bonito, sim senhor!

Jornalismo de Investigação: Diário de Notícias tem as cassetes do encontro de JCG e do seu protegido, JS, com Assis

Está tudo aqui. Vale a pena ler!

Se os estatutos do PS forem levados à letra, João Carlos Gouveia não é, nem nunca foi!, de jure, Presidente do PS!

na prática, Gouveia foi eleito por militantes que não podiam votar, por não terem as quotas em dia

sábado, 28 de novembro de 2009

Diário deficitário mantém Guerra ao PS

O Diário de Notícas continua a confundir PSD com Madeira e acha que defender a Madeira é submeter-se ao PSD. Isso tem de acabar a menos que o Diário queira acabar!
Entretanto, o Diário faz uma campanha sistemática contra o PS enquanto partido político, enquanto branqueia a acção e os atropelos à democracia por parte do PSD.

Serrão inspira-se em Nikolai Gógol?


Há uma peça de Nikolai Gógol, Almas Mortas, em que uma personagem de nome Tchíchikov vai a uma povoação da Rússia profunda comprar as almas de servos da gleba, nem ele sabe com que intuitos, mas de que resulta uma sátira mordaz e corrosiva. Lembrei-me desta peça daquele escritor russo quando li hoje no diário que Serrão diz que pretende reactivar o moribundo conselho cultivo. Saberá ele porquê e para quê se o não soube activar quando foi presidente do partido?

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Mitos IV - Dizer que a derrocada era irreversível depois da minha demissão do Secretariado em protesto contra uma calúnia é outro exagero!

III - Dizer c'a direcção começou a afundar-se qdo apresentei na Comissão Regional uma Moção contra uma aliança com o PCP é uma afronta a J. A. Cardoso

Mitos II-Dizer que eu obriguei J. S. a retirar a confiança a Isidoro e a dar conf. Imprensa na dia da Demissão de AJJ pode não passar de uma lenda!

Mitos I - Dizer que a queda de JCG se acentuou quando eu anunciei uma Moção Global é uma boutade!

Não há melhor imagem que ilustre o colo da actual direcção a J. Serrão que uma caricatura de S. António (JCG) com o Menino (Jacinto) ao colo!

É comovente ver a ternura com que a blogosfera do regime trata o João Carlos Gouveia!

Mas será mesmo que os antipatriotas desta terra, além de querem uma independência paga por Lisboa ainda não vão obrigar a falar cubano?

Aqui está uma notícia que o Conspiração às 7 não vai ler. É penas, perde uma oportunidade de se indignar!

Coincidência, ou não, o mais penalizado foi Santa Cruz, Município onde o PSD registou o pior resultado. Aqui, o próprio presidente da Câmara já havia admitido a necessidade de repensar o programa para a freguesia de Gaula, na sequência da derrota do PSD, que perdeu a Junta que havia reconquistado nas Intercalares de 2008. Jardim não esteve com 'meias medidas' e mandou retirar três investimentos que constavam do Programa de Governo para este Concelho, sendo que a freguesia 'dissidente' foi a mais prejudicada, com duas obras canceladas.

Provavelmente também a pagar a 'factura' de não ser social-democrata, a 'longínqua' freguesia socialista das Achadas da Cruz, no Porto Moniz, também viu desaparecer a construção de uma estrada que permitiria o acesso rodoviário até a Fajã das Achadas da Cruz, actualmente só acessível de teleférico. Era uma obra que havia sido conquistada pelo agora ex-presidente da Câmara, Gabriel Farinha e que o recém-eleito Valter Correia não conseguiu 'segurar',

Navios Santa Maria e Vera Cruz

O Senhor Presidente do Conselho vai falar!


Já está decidido. No último Congresso do Partido da União Regional em que participa enquanto líder, o Senhor Presidente do Conselho de Governo vai falar E dizer tudo! Sabe-se já que há quem esteja a pensar mudar-se para além-fronteiras!

PSD mais uma vez desrespeita as leis da concorrência e acusa o Diário de tentar denegrir a ALR

João Carlos Gouveia foi demitado a Lisboa para apresentar cumprimentos. É Natal, ninguém leva a mal!

Diário

Se estudasse um pouco de semântica, fonética e etimologia não lha fazia nada mal

Partindo do "lapsus linguae", e já agora, partindo do princípio de que conhece a expressão latina, talvez fosse bom saber a etimologia da palavra "cidadão", e talvez fosse bom conhecer o que é o plural com base na etimologia e o plural com base na analogia e talvez ainda consultasse o plural da mesma palavra no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, do Instituto de Lexicografia de Portugal com o nome do mesmo autor, Volume V, página 2049, coluna da direita, linha 29, ponto 5 das acepções, GRAM:
feminino: cidadão, cidadoa; pl. cidadãos. ETIM: cidade+ão; f. hist sXIV çibdadano, sXIV cidadãão, sXIV, çiobdadããos, sXV cidadões. Fique, pois, a saber, que o futuro normal e adequada à palavra cidadão, se seguisse a regra, seria cidadões e era esse o plural na época do Português Clássico e não cidadãos, que só se formou por analogia com o plural de outras palavras.
Junte a isso um estudo da evolução do léxico e da fonética, norma e uso, evolução da Língua nos espaços insulares e ultramarinos, e ficaria a saber, por exemplo, que a pronúncia e a estrutura gramatical nesses espaços conserva as normas do Português clássico, caso do Brasil, da Madeira, neste caso particular de Santana, coexistindo a norma clássica e a norma moderna, como é o caso do uso do gerúndio, falando, escrevendo, comum à Madeira e ao Brasil. Afinal, o "lapsus linguae" tem um problema, baseia-se numa norma clássica num espaço chamado Madeira, oriundo de um espaço nortenho chamado Santana. Que horror, um sotaque madeirense, arcaico, à moda de Santana: Madeira, Minha Vida! O melhor mesmo é falar cubano!
P.S.
Permita-me só uma nota: "só assim resolvia-se" (norma madeirense), talvez fosse melhor corrigir o lapso e colocar "só assim se resolvia" (norma padrão). Pois é...

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Beautiful day U2 Live8



The heart is a bloom, shoots up through the stony ground
O coração é uma flor que brota no chão rochoso
But there's no room, no space to rent in this town
Mas não há nenhum quarto, nenhum lugar para alugar nesta cidade
The traffic is stuck and you're not moving anywhere.
O trânsito engarrafou e você não está indo a lugar algum
You thought you’d found a friend to take you out of this place
Você achou que havia encontrado um amigo para lhe tirar deste lugar
Someone you could lend a hand in return for grace
Alguém a quem você pudesse dar uma força em troca de misericórdia
It's a beautiful day
É um lindo dia
The sky falls and you feel like it's a beautiful day O céu desaba e você acha que é um lindo dia
Don’t let it get away
Não deixe ele escapar
You’re on the road but you've got no destination
Você está na estrada mas não tem destino
You’re in the mud, in the maze of her imagination
Você está na lama, no labirinto da imaginação dela
You love this town even if that doesn't ring true
Você ama esta cidade, mesmo que isso não soe verdadeiro
You’ve been all over and it’s been all over you
Você conhece ela inteira, e ela conhece você por inteiro
It's a beautiful day
É um lindo dia
Don't let it get away
Não deixe ele escapar
it's a beautiful day
É um lindo dia
Touch me, take me to that other place
Toque-me, leve-me para aquele outro lugar
Teach me, I know I'm not a hopeless case
Ensine-me, eu sei que não sou um caso perdido
See the world in green and blue
Veja o mundo em verde e azul
See China right in front of you
Veja a China bem na sua frente
See the canyons broken by cloud
Veja os canyons rasgados por nuvens
See the tuna fleets clearing the sea out
Veja o cardume de atum limpando o mar
See the bedouin fires at night
Veja as fogueiras beduinas à noite
See the oil fields at first light and,
Veja os campos de petróleo à primeira luz e,
See the bird with a leaf in her mouth
Veja o pássaro com um ramo no bico
After the flood all the colours came out
Depois da enchente todas cores apareceram.
It was a beautiful day Era um lindo dia
Don't let it get away Não deixe ele escapar
Beautiful day Lindo dia



Touch me, take me to that other place
Toque-me, leve-me para aquele outro lugar
Reach me, I know I'm not a hopeless case
Alcançe-me, eu sei que não sou um caso perdido

What you don't have you don't need it now
O que você não tem, você não precisa agora
What you don't know you can feel it somehow
O que você não sabe você pode sentir de alguma forma
What you don't have you don't need it now
O que você não tem você não precisa agora
You don't need it now
Você não precisa agora
Was a Beautiful day...
Foi um lindo dia...

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

domingo, 22 de novembro de 2009

A Democracia face ao equívoco relativista

João Carlos Espada

Discutimos nos dois últimos ensaios os contornos políticos da democracia. Vimos que assentam no governo representativo limitado pela lei e que se distinguem de dois tipos de regimes rivais. Por um lado, as democracias distinguem-se de todo e qualquer regime vanguardista (de esquerda ou de direita) em que os governantes não prestam contas aos cidadãos. Por outro lado, distinguem-se dos regimes (mais uma vez, de esquerda ou de direita) que se reclamem da chamada soberania popular.

Cabe-nos agora discutir se existe ou não um fundamento moral para as democracias liberais, tais como as descrevemos aqui com base nas obras dos autores que examinámos.

RELATIVISMO DEMOCRÁTICO? Muitos comentadores têm tendência a identificar a humildade e o cepticismo intelectuais dos autores tratados ao longo destes ensaios com uma espécie de relativismo moral. Segundo esse ponto de vista, a democracia liberal distinguir-se-ia dos totalitarismos do século 20 precisamente por não abraçar qualquer moral particular enquanto "verdadeira". Os totalitarismos, pelo contrário, reclamariam para a sua "moral" o estatuto de única verdadeira - e por isso perseguiam os que não concordavam com ela.

Existe, à primeira vista, alguma plausibilidade neste argumento. No entanto, ele dificilmente resiste a uma reflexão mais prolongada. O que caracterizou os totalitarismos do século 20, quer no plano intelectual quer no plano da acção política, foi precisamente a revolta contra todos os limites morais absolutos e interpessoais ao exercício da vontade revolucionária. Por outras palavras, o colapso da liberdade deveu-se principalmente ao colapso dos padrões morais interpessoais. E os autores que estudámos tiveram clara consciência disso mesmo, embora muitos comentadores tendam a não se aperceber desse aspecto crucial.

ABSOLUTO MORAL Isaiah Berlin, por exemplo, é muitas vezes apresentado como o símbolo da recusa de quaisquer princípios morais absolutos e da defesa de um total pluralismo de valores, que seriam absolutamente incomensuráveis entre si. No entanto, no seu mais célebre ensaio, "Dois conceitos de liberdade", Berlin faz expressa e repetida referência à necessidade de um absoluto moral como trincheira contra a tirania:

"Se eu quiser preservar a minha liberdade [?] Tenho de criar uma sociedade em que existam certas fronteiras de liberdade que ninguém seja autorizado a transpor. Podem ser atribuídos diferentes nomes ou naturezas às regras que determinam essas fronteiras: direitos naturais, a palavra de Deus, lei natural ou as exigências da utilidade ou dos "interesses permanentes do homem"; posso acreditar que são válidas a priori ou reivindicá-las como os meus propósitos essenciais, ou da minha sociedade, ou cultura. (?) A crença genuína na inviolabilidade de uma área mínima de liberdade individual implica uma posição absoluta."

BARREIRAS ABSOLUTAS E Isaiah Berlin acrescenta:

"Para Constant, Mill e Tocqueville e para a tradição moral em que se inserem, nenhuma sociedade é livre a menos que seja regida por dois princípios interligados: primeiro que só os direitos, e não o poder, podem ser considerados absolutos, pelo que todos os homens, qualquer que seja o poder que os governa, têm o direito absoluto de se recusarem a comportar desumanamente; e, segundo, que existem fronteiras, não artificialmente traçadas, dentro das quais os homens devem ser invioláveis."

Por fim escreveu:

"E são regras como estas que são violadas sempre que uma pessoa é declarada culpada sem julgamento, ou punida com uma lei retroactiva; sempre que os filhos são forçados a denunciar os pais, os amigos a traírem os amigos, os soldados a usarem métodos bárbaros; sempre que os homens são torturados ou assassinados, ou minorias massacradas porque provocam a irritação de uma maioria ou de um tirano. Tais actos, ainda que legalizados pelo soberano, causam horror mesmo nos dias de hoje, e isso resulta do reconhecimento da validade moral - independentemente das leis - de algumas barreiras absolutas - à imposição da vontade de um homem a um outro."

VONTADE SEM ENTRAVE Isaiah Berlin captou de forma extraordinariamente certeira um dos segredos do totalitarismo do século XX: a sua revolta contra o "reconhecimento da validade moral - independentemente das leis - de algumas barreiras absolutas à imposição da vontade de um homem a um outro". A isto temos chamado ditadura da vontade sem entrave. Observámos que essa ditadura foi possível, em primeiro lugar, porque a ideia de governo limitado fora abandonada. Verificamos agora que Isaiah Berlin afirma que a possibilidade de um governo ilimitado ou sem entraves resulta do abandono do reconhecimento da validade moral de algumas barreiras absolutas.

Não deixa de ser curioso notar que Hayek afirmou precisamente o mesmo:

"Um sistema desse tipo (de liberdade) terá possibilidades de ser alcançado e mantido apenas se toda a autoridade, incluindo a da maioria, for limitada no exercício do poder coercivo por princípios gerais com os quais a comunidade se tenha identificado. A liberdade individual, onde quer que tenha existido, tem sido sempre produto de um respeito dominante por esses princípios, os quais, no entanto, nunca foram completamente articulados em documentos constitucionais."

POSITIVISMO E ARBITRARIEDADE Mais adiante, Hayek considera que foi o alastramento do positivismo que conduziu ao abandono do respeito por esses princípios:

"É apenas demasiado verdade, como reconheceram não apenas opositores do positivismo como Emil Brunner, mas no fim até positivistas de toda a vida como Gustav Radbruch, que foi a prevalência do positivismo que tornou indefesos os guardiões da lei contra os novos avanços do governo arbitrário".

Finalmente, Hayek reforça a sua crítica ao positivismo citando Emil Brunner:

"O Estado totalitário é simplesmente e somente o positivismo legal em prática política".

POSITIVISMO E MARXISMO É importante notar que também Karl Popper acusou o positivismo de estar associado ao crescimento do totalitarismo e ao abatimento das fronteiras morais que limitavam o exercício do poder arbitrário. No seu famoso "esforço de guerra", "A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos", Popper caracterizou o positivismo ético como a atitude que "partilha com o naturalismo ético a crença em que devemos tentar reduzir normas a factos. Mas os factos são desta vez factos sociológicos, designadamente, as normas realmente existentes. O positivismo mantém que não há outras normas que não sejam as leis que foram feitas e que por isso têm existência positiva. Outros padrões são considerados produtos irreais da imaginação. As leis realmente existentes são consideradas como os únicos possíveis padrões de bem: o que é, é bom. (a força é o direito)."

Karl Popper considerou que esta forma de positivismo ético (denunciada por ele em Hegel) foi levada ao extremo pelo historicismo marxista:

"Em capítulos anteriores, fiz referência ao positivismo moral (especialmente o de Hegel), a teoria de que não há qualquer outro padrão moral a não ser aquele que existe; aquilo que é, é razoável e bom; portanto, a força é o direito. O aspecto prático desta teoria é este: uma crítica moral de um estado de coisas actual torna-se impossível, uma vez que é esse próprio estado de coisas que determina o padrão moral das coisas. Ora a teoria moral historicista que estamos a considerar (de Marx) nada mais é do que uma outra forma de positivismo moral."

PENSAMENTO ALEMÃO Isto significa que, para Popper, o historicismo é apenas uma forma do positivismo moral que ele e Hayek consideraram responsável pelo abandono dos princípios morais. E foi este abandono dos princípios morais que ambos, juntamente com Isaiah Berlin, apontaram como geradores do poder arbitrário sem limites. Ora foi precisamente este fenómeno que também Leo Strauss apontou, em 1950, como gerador do totalitarismo moderno:

"Ao abandonar a ideia de direito natural, o pensamento alemão criou o "sentido histórico" e assim foi conduzido no final ao relativismo total. O que era uma descrição toleravelmente exacta do pensamento alemão há vinte e sete anos parece agora aplicar-se ao pensamento ocidental no seu conjunto. Não seria a primeira vez que uma nação, derrotada no campo de batalha e, por assim dizer, aniquilada como entidade política, privou os seus conquistadores do mais sublime fruto da vitória por meio da imposição sobre eles do jugo do seu próprio pensamento."

CRISE DA MODERNIDADE Para Strauss, o relativismo estivera na base do fenómeno totalitário que fora derrubado pelas democracias ocidentais. Mas, no plano puramente intelectual, o relativismo sobrevivera à derrota do totalitarismo e dominava a atmosfera intelectual e moral das democracias. O triunfo do relativismo era, para Strauss, a origem daquilo que designou por crise da cultura ocidental moderna:

"A crise da modernidade revela-se no facto, ou consiste no facto, de que o homem ocidental moderno já não sabe aquilo que quer - já não acredita que pode saber o que é bom e mau, o que é certo e errado. Até algumas gerações atrás, era geralmente aceite que o homem pode saber o que é certo e errado, qual é a ordem de sociedade justa, ou boa ou melhor - numa palavra, que a filosofia política é possível e necessária. No nosso tempo, essa fé perdeu o seu poder."
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O racionalismo dogmático na origem do dogmatismo

Como explicar o triunfo intelectual do relativismo no século XX? Quem ou o quê destruiu os limites morais, absolutos e interpessoais, ao exercício da vontade sem entraves?, João Carlos Espada

o sábado passado discutimos os fundamentos morais da democracia liberal. Observámos que os totalitarismos do século 20, da esquerda e da direita, se caracterizaram pela revolta contra todos os limites morais, absolutos e interpessoais, ao exercício da vontade revolucionária.

Por outras palavras, o colapso da liberdade ficou a dever-se principalmente ao colapso dos padrões morais interpessoais. Por outras palavras ainda, o colapso da liberdade ficou a dever-se ao triunfo intelectual e moral do relativismo.

PERGUNTA CRUCIAL A pergunta que decorre daqui é incontornável: como explicar o triunfo intelectual do relativismo no século XX? Quem ou o quê destruiu os limites morais, absolutos e interpessoais, ao exercício da vontade sem entraves?

Os autores que discutimos ao longo destes ensaios sugerem uma resposta inesperada a esta pergunta crucial: eles sugerem que foi o racionalismo dogmático que gerou o relativismo. Mas não contrapõem ao racionalismo dogmático qualquer forma de irracionalismo. Eles sustentam um outro tipo de racionalismo, a que podemos chamar crítico, ou falibilista. Esta é uma longa história de que aqui podemos dar apenas um breve apanhado.

RACIONALISMO DOGMÁTICO Karl Popper atribuiu importância decisiva à distinção entre racionalismo crítico e racionalismo dogmático, "compreensivo" (no sentido de abrangente), ou total. Apresentando-se como um racionalista de tipo especial, ou seja, como um racionalista crítico, Popper condenou a presunção do racionalismo dogmático:

"Podemos descrever o racionalismo acrítico ou dogmático como a atitude da pessoa que diz: ?Não estou disposto a aceitar nada que não possa ser defendido com base em argumentos ou na experiência?. Podemos expressar esta ideia também sob a forma do princípio de que qualquer pressuposto que não seja confirmado por argumentos ou pela experiência deve ser rejeitado. Ora, é fácil ver que este princípio do racionalismo acrítico carece de coerência, pois, como não pode, por seu turno, ser confirmado por argumentos ou pela experiência, implica que ele próprio deve ser rejeitado. (Assemelha-se ao paradoxo do mentiroso, ou seja, a uma frase que afirma a sua própria falsidade.) O racionalismo acrítico é, portanto, insustentável em termos lógicos; e uma vez que é possível provar isto com argumentos puramente lógicos, é possível demonstrar a invalidade do racionalismo acrítico recorrendo à sua principal arma, os argumentos."

PRESSUPOSTO COLOSSAL E Popper acrescentou: "Podemos generalizar esta crítica. Como todos os argumentos devem proceder de pressupostos, é evidentemente impossível exigir que todos os pressupostos se baseiem em argumentos. A exigência de muitos filósofos de que não partamos de qualquer pressuposto e nunca pressuponhamos nada acerca da ?razão suficiente?, e mesmo a exigência menos insistente de que partamos de um conjunto muito pequeno de pressupostos (?categorias?), são ambas inconsistentes nesta formulação. Porque essas mesmas exigências assentam no pressuposto verdadeiramente colossal de que é possível começar sem pressupostos, ou apenas com alguns pressupostos, e mesmo assim obter resultados válidos."

BUSCA DA CERTEZA Também Michael Oakeshott viu no racionalismo dogmático a origem do relativismo. Chamou-lhe a política de fé, por oposição à política de cepticismo, sendo a primeira denominada também política racionalista, ou política da perfeição. Atribuiu a Descartes e Bacon a origem do racionalismo dogmático: "O objectivo de Descartes, tal como o de Bacon, é a certeza. O conhecimento seguro só pode surgir numa mente esvaziada: a técnica da investigação começa com uma depuração intelectual. O primeiro princípio de Descartes é ?de ne recevoir jamais aucune chose pour vraie que je ne la connusse évidemment être telle, c?est à dire d?eviter soigneusement la précipitation et la prévention?, de bâtir dans un fonds qui est tout à moi?, e diz que o investigador é ?comme un homme qui marche seul et dans les ténèbres? » (em francês, no original inglês de Oakeshott).

FALSA ABERTURA Oakeshott mostra como por detrás da aparente "abertura de espírito" do racionalista (o racionalista acrítico e total, como teria dito Karl Popper) se encontra a sua busca obsessiva da certeza e a sua muito dogmática (e muito pouco "aberta") incapacidade de viver com a incerteza, ou com o conhecimento falível e experimental inerente às tradições descentralizadas, ao hábito ou ao simples common sense: "O cerne da questão é a preocupação do Racionalista com a certeza. Para ele, técnica e certeza são indissociáveis porque o conhecimento exacto é, para ele, conhecimento que não precisa de ir além de si mesmo para se saber certo? Por exemplo, a superioridade de uma ideologia em relação a uma tradição de pensamento deve-se à sua aparente autonomia. É mais fácil ensiná-la a uma mente vazia; e se for ensinada a alguém que já acredita em qualquer coisa, a primeira coisa que o professor deverá fazer é administrar um purgante, certificar-se de que todos os preconceitos e ideias preconcebidas foram eliminados, construir os seus alicerces sobre a rocha inabalável da ignorância absoluta."

COMEÇAR DO NADA "Construir os seus alicerces sobre a rocha inabalável da ignorância absoluta", diz Oakeshott acerca da atitude do racionalista. Ora é exactamente desta forma que Karl Popper descreveu a atitude de um racionalista dogmático: "Não estou interessado na tradição. Quero julgar tudo pelos seus próprios méritos; quero conhecer os seus méritos e deméritos, e quero fazê-lo o mais independentemente possível de qualquer tradição. Quero julgar com o meu próprio entendimento e não com o entendimento de outros que viveram há muito tempo."

Karl Popper argumentou que é impossível substituir todo o conhecimento herdado por novo conhecimento alegadamente fundado "dans un fond qui est tout à moi", para usar a expressão de Descartes. Isso significaria substituir em uma ou duas gerações tudo aquilo que amadureceu gradualmente ao longo das gerações. Recordemos mais uma vez o que disse Popper a este respeito:

"É uma questão muito simples e decisiva, que no entanto poucas vezes é suficientemente entendida pelos racionalistas - que não podemos começar do nada; que precisamos de usar os conhecimentos científicos daqueles que vieram antes de nós. Se começássemos do nada, quando morrêssemos nem teríamos chegado aonde chegaram Adão e Eva (ou, se preferirem tão longe como o homem de Neanderthal). Na ciência queremos progredir, e isto significa que temos de nos manter nos ombros dos nossos predecessores."

CHEGAR AO NADA Tal como na ciência, também no âmbito dos padrões morais e de comportamento não é possível começar do nada. A busca da certeza sem pressupostos - a ambição de começar do nada -- também aqui conduzirá a que cheguemos ao nada. Isto significa que nenhum padrão - nem mesmo as sagradas palavras da Declaração de Independência americana, "os homens nascem iguais", muito menos o código inglês da gentlemanship - nada no fim será poupado à busca da certeza sem pressupostos por parte do racionalismo dogmático.

Então, enquanto a purga intelectual prossegue, à medida que todos os preconceitos e ideias preconcebidas são eliminados, o racionalismo dogmático aproximar-se-á triunfantemente do seu grande objectivo: estabelecer as suas fundações sobre a rocha cartesiana da ausência de pressupostos, ou, como escreveu Oakeshott, sobre a rocha inabalável da ignorância absoluta.

RELATIVISMO DOGMÁTICO Mas a ignorância absoluta é o reino do relativismo absoluto. É o reino do nada, do "sem significado", ou do "por que não?" e do "seja o que for".

Por outras palavras, a busca da certeza - que conduziu o racionalista dogmático à destruição de todos os pressupostos que ele não conseguia demonstrar - condu-lo, por fim, a uma certeza absoluta: que nada pode ser estabelecido acerca da moral ou dos costumes, para não mencionar o dever ou a honra e, hoje em dia, até acerca do conhecimento científico.

No final, até a liberdade e a democracia liberal se tornam apenas mais outra "narrativa". Se tudo é resultado da vontade arbitrária, por que é que a democracia liberal deve ser entendida como melhor do que as suas inimigas?

VONTADE SEM ENTRAVES Eis como chegámos à destruição de todos os limites morais, absolutos e interpessoais, ao exercício da vontade revolucionárias sem entraves. Discutiremos no próximo sábado se e como é possível voltar a aceitar limites morais.
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Dois conceitos de democracia

A questão do governo limitado distingue as revoluções inglesa e americana, por um lado, da Revolução Francesa, por outro. As revoluções inglesa e americana convergiram na importância de limitar o poder dos governos, mesmo quando estes têm origem na vontade popular ou da maioria., João Carlos Espada

Depois de dez ensaios que passaram em revista vários autores cruciais da tradição política de língua inglesa, chegou a altura de iniciar a viagem pelos conceitos que lhes são comuns. Recordamos que o objectivo é encontrar algumas das características definidoras dessa tradição - características que possam ajudar a compreender o "mistério inglês e a corrente de ouro" que foi apresentado no primeiro ensaio (9 de Maio).

GOVERNO LIMITADO Começarei pela questão aparentemente modesta do governo limitado. Na Europa continental é amplamente difundida a crença de que a principal distinção entre democracia e regimes autoritários reside na aceitação ou rejeição do governo do povo ou da maioria, também designado por "soberania popular". O que é curioso é que nenhum dos autores tratados ao longo destes ensaios - e que defenderam a democracia liberal contra várias formas de despotismo - subscreveu o princípio da soberania popular. Na verdade, quase todos o criticaram expressamente. Isso deveria precaver-nos contra a tentação simplista de identificar a democracia liberal com o princípio da soberania popular.

Karl Popper (ensaio de 13 de Junho) condenou severamente as doutrinas vanguardistas de Platão e Marx, segundo as quais o melhor regime seria definido pelo governo de um grupo de especialistas, os filósofos em Platão, os líderes do proletariado em Marx. Mas teve a explícita preocupação de sublinhar que a alternativa não residia simplesmente no governo do povo.
A sua hoje famosa teoria da democracia parte precisamente da asserção de que a pergunta "quem deve governar?" deve ser posta de lado como pergunta crucial para definir o melhor regime político. Essa pergunta, argumentou Popper, deve ser substituída por esta outra: como afastar os maus governos sem derramamento de sangue, sem violência? Ao procurar responder a esta pergunta, Popper mostrou que o governo da maioria não seria, só por si, suficiente. Também o governo da maioria teria de ser limitado por um conjunto de regras que o impedissem de se transformar numa ditadura.

GOVERNO CONSTITUCIONAL Friedrich Hayek (ensaio de 20 de Junho) dedicou grande parte da sua obra a este problema preciso e teve a preocupação de recordar o longo processo de limitação do governo que conduziu gradualmente à emergência das modernas democracias liberais, sobretudo nos países de língua inglesa. Isaiah Berlin (ensaio de 11 de Julho) sublinhou a importância da distinção entre liberdade e soberania e acusou a confusão entre ambas de estar na origem das piores tiranias. Michael Oakeshott (ensaio de 27 de Junho) observou que a limitação do governo pela lei era um dos principais traços distintivos da civilização ocidental. E Leo Strauss (ensaio de 4 de Julho), recordando que Sócrates fora condenado à morte pela democracia ateniense, sublinhou insistentemente que a democracia liberal devia precaver-se contra o governo da multidão ("the rule of the mob").


Por outras palavras, todos os nossos autores convergiram na importância de limitar o poder dos governos, mesmo quando estes têm origem na vontade popular ou da maioria. E todos concordaram que essa limitação passa sobretudo por um sistema constitucional de separação de poderes, freios e contrapesos, direitos e garantias legais: numa palavra, os governos devem ser limitados pela lei, aquilo que na tradição anglo--americana se designa por Rule of Law e na tradição continental por Rechtsstaat ou estado de direito, ou ainda, em ambas, por governo constitucional.

DUAS TRADIÇÕES A diferença entre governo limitado e governo do povo está patente na história do pensamento político desde as suas origens na Grécia ntiga. Aristóteles, que pode ser visto como um antecessor dos autores aqui tratados, defendia um sistema misto e não uma democracia pura. Mas é na emergência das grandes revoluções da época moderna - a de 1688 em Inglaterra, de 1776 na América e a de 1789 em França - que esta distinção se torna crucial.
A questão do governo limitado distingue claramente a orientação das revoluções inglesa e americana, por um lado, da Revolução Francesa, por outro. No plano estritamente teórico, o tema do governo limitado é central em John Locke, David Hume, Edmund Burke e nos "Federalist Papers" que prepararam a Constituição Americana de 1787. Pelo contrário, está absoluta e expressamente ausente do pensamento de Jean-Jacques Rousseau, o autor que mais influenciou a Revolução Francesa, e em particular os jacobinos, e que mais influenciou a sua herança intelectual até à emergência do marxismo (que, como poderíamos argumentar noutra altura, é em quase tudo devedor de Rousseau).

MADISON E ROUSSEAU Num ensaio anterior (30 de Maio), tratei este assunto através de uma comparação crítica entre James Madison e Rousseau. Apenas a título de exemplo, recordo aqui a comparação entre as seguintes passagens de "O Federalista" e "O Contrato Social". Comecemos por recordar Madison:
"Se os homens fossem anjos, os governos não seriam necessários. Se os anjos governassem os homens, não seriam necessários nem controlos externos nem internos sobre os governos. Ao conceber um governo que será administrado por homens sobre homens, a primeira dificuldade reside aqui: primeiro é preciso capacitar o governo a controlar os governados; e a seguir é preciso obrigá-lo a controlar-se a si próprio. Uma dependência do povo é, sem dúvida, o controlo primário sobre o governo; mas a experiência mostrou à humanidade a necessidade de precauções adicionais."
Recordemos agora as palavras de Rousseau:
"Agora, uma vez que o soberano é formado inteiramente pelos indivíduos que o compõem, ele não tem, nem poderia ter, qualquer interesse contrário ao deles; e assim o soberano não tem necessidade de dar garantias aos súbditos, porque é impossível a um corpo desejar produzir danos a todos os seus membros, da mesma forma que, como veremos a seguir, ele não pode produzir danos a qualquer membro particular. O soberano, pelo mero facto de ser, é sempre aquilo que deve ser."

GOVERNO QUE PRESTA CONTAS Rousseau introduziu a ideia da vontade geral sem constrangimentos, e esta foi interpretada de duas maneiras distintas pelos seus seguidores. Numa versão democrata radical, a vontade geral foi interpretada como vontade soberana, ilimitada, da maioria. Numa versão vanguardista, a vontade geral foi interpretada como algo semelhante a uma "essência": não a vontade expressa pelos cidadãos, ainda prisioneiros dos seus interesses particulares, mas uma espécie de "interesse geral" dos cidadãos, que estes seriam incapazes de conhecer, e que deveria ser interpretada pelos seus líderes. Esta segunda interpretação foi claramente a de Karl Marx e seus discípulos.
O que importa aqui sublinhar é que nenhuma das versões atribui ao corpo político a função principal de protecção da liberdade e dos modos de vida existentes. Pelo contrário, quer uma quer outra atribuem à esfera política um poder sem restrições, sem entraves. E esse poder tem um propósito: mudar a sociedade, transformá-la com vista a atingir uma nova sociedade inspirada num modelo particular de perfeição. Com Rousseau, a função de governar passa a ser vista como uma função intrinsecamente transformadora. Nos herdeiros de Rousseau existem vários nomes para essa transformação: modernização, igualdade, neutralidade moral, etc., mas o ponto que nos interessa reter é que governar passa a ser entendido como intervir, mudar, inovar, em vez de basicamente garantir a paz civil e a defesa nacional, administrar a justiça e proteger modos de vida realmente existentes.

DESPOTISMO INOVADOR Como salientei no ensaio sobre Edmund Burke (16 de Maio), ele tinha detectado uma versão (muito mais branda) deste "despotismo inovador" nos governos de corte do rei George III. Burke queria limitar este espírito de inovação ilimitado, que entendia como uma ameaça autoritária aos modos de vida existentes, e as suas instituições intermédias.
"É da natureza do despotismo odiar qualquer forma de poder que não seja o decorrente do seu prazer momentâneo; e aniquilar todas as situações intermédias entre a força sem limites da sua parte e a total debilidade por parte do povo.
Ver-se livre de todas estas instâncias independentes e intermédias e assegurar à corte a utilização ilimitada e sem controlo da sua própria vasta influência, sob a única direcção do seu próprio favor particular, tem sido há alguns anos o grande objectivo político. [?] Trata-se de um esquema de perfeição, a ser realizado numa monarquia muito para além da república visionária de Platão."
Burke era um defensor empenhado do Parlamento e do governo representativo. Neste sentido, podemos dizer que era um democrata de tipo especial. Ao contrário da maioria dos intérpretes continentais da democracia, sob a influência de Rousseau, Burke não entendeu o governo popular ou representativo como uma fonte de governo ilimitado. Para Burke, o governo representativo é sobretudo um limite à vontade política sem entraves, um representante de modos de vida realmente existentes e uma garantia da sua protecção contra "esquemas de perfeição" concebidos a partir de um centro único de poder. Para Rousseau e seus seguidores, o governo da vontade geral é visto como uma assembleia em permanente acção política transformadora.

DIFUSÃO DO PODER Isto conduz-nos a uma outra característica crucial da tradição política anglo-americana: o conceito de liberdade como difusão do poder. Trataremos este tema no próximo sábado.

Karl Popper: A sociedade aberta e os seus inimigos, João Carlos Espada

O governo representativo ou popular surge, para Popper, como um dos instrumentos para limitar o poder, e não como fonte de um poder absoluto que devesse ser transferido de um ou de alguns para todos. O positivismo ético, alertou também Popper, gera um relativismo desenfreado e, tal como a teoria da soberania popular, abre caminho a um Estado ilimitado, um Estado que não conhece limites morais.

Karl Raimund Popper nasceu em 1902, em Viena, e faleceu em 1994 em Kenley, Sul de Londres. Bertrand Russell e Isaiah Berlin consideraram que a sua crítica ao marxismo fora devastadora e definitiva. Russell chegou mesmo a dizer que o livro de Popper "The Open Society and Its Enemies", de 1945, era uma espécie de Bíblia das democracias ocidentais.
É um facto que, em inúmeras democracias ocidentais, os líderes políticos do centro-esquerda e do centro-direita se reclamaram da influência popperiana. Na Alemanha Federal, o chanceler social-democrata Helmut Schmidt e o chanceler democrata-cristão Helmut Khol prefaciaram obras sobre ou de Karl Popper. Em Portugal, Mário Soares e Diogo Freitas do Amaral, entre outros, declararam-se admiradores do velho filósofo. Tive o prazer de acompanhar cada um deles em visitas privadas a casa de Sir Karl, em Kenley, em 1992 e 1993, respectivamente.
Winston Churchill. Até 1935, Karl Popper viveu basicamente em Viena de Áustria. Depois de uma formação académica muito variada e de uma esporádica passagem pelo marxismo, quando tinha dezasseis anos, doutora-se em Filosofia em 1928. Em 1934 publica o seu primeiro livro, que se tornaria um clássico da filosofia da ciência: "A Lógica da Descoberta Científica".
Apesar de ter sido publicado em alemão, o livro teve impacto imediato em Inglaterra e gerou vários convites para palestras por parte de universidades inglesas. Daí resultou um périplo inglês de nove meses, em 1935-1936. Esses nove meses "tinham sido uma revelação e uma inspiração", conta Popper na sua "Autobiografia Intelectual" [Esfera do Caos, 2008]: "A honestidade e a decência das pessoas e o seu forte sentimento de responsabilidade política deixaram em mim a mais forte impressão."
Ainda assim, Popper observou com preocupação que, mesmo em Inglaterra, ninguém nessa época parecia compreender a ameaça de Hitler - com excepção da voz corajosa e isolada de Winston Churchill. Desde essa altura, Karl Popper tornou-se um admirador incondicional de Churchill.
Nova Zelândia. Em Fevereiro de 1937, Popper embarcou para a Nova Zelândia, onde obtivera um lugar de professor em Christ Church. Tinha acabado de declinar um convite de Cambridge em benefício do seu amigo Fritz Waisman, já nessa época perseguido pelos nazis.
Apesar da tremenda carga de horas lectivas a que foi submetido na Nova Zelândia, Popper lançou-se ao trabalho e produziu duas obras magistrais - "A Pobreza do Historicismo" e "A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos" - entre 1938 e 1943. Apresentou-os como o seu "esforço de guerra" contra os totalitarismos nazi e comunista.
Regresso a Londres. Ainda em 1945, Karl Popper recebe um convite de Friedrich Hayek para leccionar na London School of Economics. Desta vez o casal Popper aceitou o convite sem pestanejar. Em Janeiro de 1946 chegavam a Inglaterra, onde permaneceriam até ao final da vida, tornando-se orgulhosos e felizes cidadãos britânicos.
Em 1964, Karl Popper receberia da rainha o título de Sir. Faleceu em 1994, na sua residência de Kenley, no Sul de Londres, onde tive o privilégio de o visitar regularmente entre 1990 e 1994, durante o meu doutoramento em Oxford, ao qual me candidatara com o seu apoio.
Todos os cisnes são brancos? Na base da filosofia do conhecimento de Popper, originalmente apresentada no seu livro "Lógica da Descoberta Científica", está uma observação muito simples que é costume designar por "assimetria dos enunciados universais". Esta assimetria reside no facto de que, enquanto nenhum número finito de observações (positivas) permite validar definitivamente um enunciado universal, basta uma observação (negativa) para o invalidar ou refutar. Por outras palavras, e citando um exemplo que se tornou clássico: por mais cisnes brancos que sejam encontrados, nunca podemos ter a certeza de que todos os cisnes são brancos (pois amanhã alguém pode encontrar um cisne preto). Em contrapartida, basta encontrar um cisne preto para ter a certeza de que é falso o enunciado universal "todos os cisnes são brancos".
Karl Popper fundou nesta assimetria a sua teoria falibilista do conhecimento. Argumentou que o conhecimento científico não assenta no chamado método indutivo, mas numa contínua interacção entre conjecturas e refutações. Enfrentando problemas, o cientista formula teorias conjecturais para tentar resolvê-los. Essas teorias serão então submetidas a teste. Se forem refutadas, serão corrigidas (ou simplesmente eliminadas) e darão origem a novas teorias, que por sua vez voltarão a ser submetidas a teste. Mas, se não forem refutadas, não serão consideradas provadas. Serão apenas corroboradas, admitindo-se que no futuro poderão ainda vir a ser refutadas por testes mais rigorosos. O nosso conhecimento é, por isso, fundamentalmente conjectural e progride por ensaio e erro: "Sabemos muito pouco e cometemos muitos erros. Mas podemos aprender com eles."


A superstição marxista. Entre as múltiplas consequências desta visão do progresso do conhecimento encontram-se duas que terão particular importância para a filosofia política e moral de Popper.

Em primeiro lugar, o chamado critério de demarcação entre asserções científicas e não científicas: serão asserções científicas apenas aquelas que sejam susceptíveis de teste, isto é, de refutação.
Este ponto será de crucial importância para a crítica de Popper ao chamado historicismo marxista. Marx anunciara como lei científica da história a inevitável passagem do capitalismo ao socialismo e depois ao comunismo. Mas não definira qualquer horizonte temporal para essa previsão. Isso na verdade significa que a previsão não é susceptível de teste. Trata-se por isso apenas de uma profecia, uma superstição em nome da ciência.
Sociedade aberta. Uma segunda consequência da epistemologia de Popper reside na centralidade da liberdade de crítica. A possibilidade de criticar uma teoria, de a submeter a teste e de tentar refutá-la, é condição indispensável do progresso do conhecimento.
É aqui que Popper vai fundar a distinção fundamental entre sociedade aberta e sociedade fechada. Na primeira existe espaço para a liberdade de crítica e para a gradual alteração ou conservação de leis e costumes através da crítica racional. Na segunda, pelo contrário, leis e costumes são vistos como tabus imunes à crítica e à avaliação pelos indivíduos. No capítulo 10 da obra "A Sociedade Aberta e os seus Inimigos" [Fragmentos, 1990], Karl Popper desenvolve uma poderosa e emocionada defesa do ideal da sociedade aberta, fazendo recuar as suas origens à civilização comercial, marítima, democrática e individualista do iluminismo ateniense do século V a. C. - que o autor contrasta duramente com a tirania colectivista e anticomercial de Esparta.
Contra a soberania popular. Sendo um intransigente defensor das democracias liberais, Popper é, contudo, um crítico contundente das teorias usualmente associadas à democracia, em particular a herdada de Rousseau - que entende a democracia como o regime fundado na chamada "soberania popular".
Popper começa por observar que esta teoria da "soberania popular" se inscreve numa tradição de definição do melhor regime político em termos da resposta à pergunta "quem deve governar?". Mas esta pergunta, prossegue o autor, conduzirá sempre a uma resposta paradoxal. Se, por exemplo, o melhor regime for definido como aquele em que um - talvez o mais sábio, ou o mais forte, ou o melhor - deve governar, então esse um pode, segundo a definição do melhor regime, entregar o poder a alguns ou a todos, dado que é a ele que cabe decidir ou governar.
Chegamos então a um paradoxo: uma decisão conforme à definição de melhor regime conduz à destruição desse mesmo regime. Este paradoxo ocorrerá qualquer que seja a resposta à pergunta "quem deve governar?" (um, alguns, ou todos reunidos em colectivo) e decorre da própria natureza da pergunta - que remete para uma resposta sobre pessoas e não sobre regras que permitam preservar o melhor regime.
Estado limitado. A teoria da democracia de Popper vai então decorrer da resposta a outro tipo de pergunta: não sobre quem deve governar, mas sobre como evitar a tirania, como garantir a mudança de governo sem violência. O meio para alcançar este objectivo residirá então num conjunto de regras que permitam a alternância de propostas concorrentes no exercício do poder e que impeçam que, uma vez chegadas ao poder, qualquer delas possa anular as regras que lhe permitiram lá chegar.
O governo representativo ou democrático surge então como uma, e apenas uma, dessas regras. Elas incluem a separação de poderes, os freios e contrapesos, as garantias legais - numa palavra, o governo constitucional ou limitado pela lei. Nesta perspectiva, o governo representativo ou popular surge como um dos instrumentos para limitar o poder, e não como fonte de um poder absoluto que devesse ser transferido de um ou de alguns para todos.
Inimigos da sociedade aberta. Entre os inimigos da sociedade aberta, Popper aponta o positivismo ético, um elemento fundamental, embora pouco notado, do marxismo e do nazismo. O positivismo ético "sustenta não existirem outras normas para além das leis que foram realmente consagradas (ou positivadas) e que portanto têm uma existência positiva. Outros padrões são considerados produtos irreais da imaginação".
O problema óbvio com esta teoria é que ela impede qualquer tipo de desafio moral às normas existentes e qualquer limite moral ao poder político. Se não existem padrões morais além dos positivados na lei, a lei que existe é a que deve existir. Esta teoria conduz ao princípio de que a força é o direito. Como tal, opõe-se radicalmente ao espírito da sociedade aberta: esta funda-se, como vimos, na possibilidade de criticar e gradualmente alterar ou conservar leis e costumes. O positivismo ético, ao decretar a inexistência de valores morais para além dos contidos nas normas legais realmente existentes, conduz à desmoralização da sociedade e, por essa via, à abolição do conceito de liberdade e responsabilidade moral do indivíduo.
Este é talvez um dos aspectos mais incompreendidos da obra de Popper. A ideia de "abertura" foi captada por modas e teorias intelectuais relativistas que Popper na verdade condenara como inimigos da sociedade aberta. O positivismo ético, alertou Popper, gera um relativismo desenfreado e, tal como a teoria da soberania popular, abre caminho a um Estado ilimitado, um Estado que não reconhece limites morais.

Liberdade como conversação

Esta ideia de conversação é particularmente característica das sociedades de língua inglesa. Aí não assistimos a cortes radicais com o passado. A liberdade ou a democracia não são atribuídas a um acto fundador, a uma revolução fundadora, ou a um específico "sábio legislador". A liberdade e a democracia são entendidas como produto de uma longa evolução gradual, uma longa e perpétua conversação , João Carlos Espada

Pode o relativismo ser derrotado? Discutimos esta pergunta no sábado passado e observámos que os autores estudados ao longo destes ensaios não forneceram uma resposta inteiramente definitiva. Porém, talvez tenham sugerido algumas referências seguras para enfrentar a pergunta.

Três referências Em primeiro lugar, todos eles sustentaram a inviabilidade do relativismo. Os enunciados de facto ou os padrões de comportamento não podem ser equivalentes ou arbitrários, porque diferentes enunciados ou padrões produzem diferentes consequências. Estas consequências não são equivalentes entre si.
Em segundo lugar, os nossos autores convergiram na necessidade de defender uma esfera de inviolabilidade em torno da pessoa. Se não existir protecção da vida e da liberdade de cada pessoa, não existirão barreiras ao exercício do poder arbitrário. O respeito pela vida e pela liberdade de cada um geram uma presunção favorável à propriedade privada e aos contratos consensuais entre adultos responsáveis. A isto chamaram os nossos autores "the rule of law", o Estado de direito.
Em terceiro lugar, observámos que todos os autores estudados partilham uma visão crítica do racionalismo dogmático. Por outras palavras, todos eles são críticos da concepção continental ou cartesiana de Razão, com R maiúsculo. Esta concepção cartesiana, com diria Popper, atribui à Razão "a assunção verdadeiramente colossal de que é possível começar sem pressupostos, ou com muito poucos, e mesmo assim obter resultados válidos".

Conversação Neste sentido, pode ser dito que a resposta dos nossos autores ao relativismo é fundamentalmente negativa. Afirmam que o relativismo é insustentável, mas que a Razão não pode fornecer uma resposta definitiva ao relativismo, precisamente porque não é essa a forma de operar da razão: não faz tábua rasa e começa de novo.
A razão que os nossos autores têm em mente opera aos ombros do conhecimento herdado e da sabedoria herdada. E aborda de forma crítica os problemas ou perguntas específicas que vão emergindo. Sugere então novas soluções e submete-as a teste, através de um processo de tentativa e erro. Isto dá origem a um diálogo, a uma controvérsia, a uma competição ou uma conversação entre concepções concorrentes e tradições concorrentes. Mas a nenhuma é permitida uma supremacia absoluta, de tal forma que possa eliminar todas as concepções concorrentes e redesenhar toda a sociedade de acordo com as suas concepções particulares.
O que acabamos de descrever sucintamente corresponde de facto à vida - política, económica, cultural e também moral - de uma sociedade livre, onde decorre uma conversação permanente: não apenas entre concepções concorrentes actuais, mas também entre o passado, o presente e o futuro, tal como sublinharam Oakeshott e Burke.
Esta ideia de conversação é particularmente característica das sociedades de língua inglesa. Aí não assistimos a cortes radicais com o passado. A liberdade ou a democracia não são atribuídas a um acto fundador, a uma revolução fundadora ou a um específico "sábio legislador". A liberdade e a democracia são entendidas como produto de uma longa evolução gradual, uma longa e perpétua conversação.

Fé e razão Esta é precisamente a expressão política da crítica filosófica do racionalismo dogmático que, de diferentes modos, foi desenvolvida por Popper, Hayek, Berlin, Oakeshott, Strauss e Dahrendorf. Poder-se-ia dizer que esta foi uma das preocupações constantes de Edmund Burke, a quem forneceu o móbil para o seu primeiro livro, "A Vindication of Natural Society".
Esta concepção é ainda particularmente evidente em Tocqueville, quando o autor procura descrever a distinção mais importante entre a América e a França:
"Já disse o suficiente para iluminar com exactidão o carácter da civilização anglo-americana. É o resultado (e deve-se manter isto sempre em vista) de dois elementos distintos, que noutros locais estiveram em desacordo frequente, mas que os americanos realizaram através de, em certa medida, uma junção e uma combinação admirável de ambos. Refiro-me ao espírito de religião e ao espírito de liberdade [...] Deste modo, no mundo moral tudo é classificado, sistematizado, previsto e decidido com antecedência; no mundo político tudo é debatido, discutido e incerto. Num deparamo-nos com uma obediência passiva, apesar de voluntária; no outro, com uma independência desdenhosa da experiência e desconfiada em relação a toda a autoridade. Estas duas tendências, aparentemente tão dissonantes, estão longe de ser conflituosas: ambas progridem em conjunto e apoiam--se mutuamente. [...]




A liberdade considera a religião sua parceira em todos os seus combates e triunfos, o berço da sua infância e a fonte divina das suas reivindicações. Entende a religião como uma garantia da moralidade, e a moralidade como a melhor segurança da lei e o penhor mais certo da duração da liberdade."


Gânglio central Uma concepção notavelmente semelhante foi apresentada por Élie Halevy, e retomada por Gertrude Himmelfarb, acerca da Inglaterra vitoriana:
"O utilitarismo, o darwinismo, o positivismo, o racionalismo, o criticismo bíblico e o humanismo ateu - nenhum destes conseguiu arruinar a moralidade, como alguns temiam, nem providenciar um 'novo motivo' para a moralidade, como aspiraram Macaulay e outros. Ao limite, o que amparou a ética vitoriana foi essencialmente aquilo que de início a inspirou - um evangelismo não-sectário e latitudinário.
[...] Esse 'gânglio central' da vida moral pode bem ter sido o centro nevrálgico da história inglesa. Foi aqui que os irreconciliáveis foram reconciliados, que as paixões foram esfriadas, que os interesses e as ideologias foram silenciados. [...] O verdadeiro 'milagre da Inglaterra moderna' (a famosa expressão de Halevy) não está em ter sido poupada à revolução, mas em ter assimilado tantas revoluções - industrial, económica, social, política, cultural - sem recorrer à Revolução."

Gentlemanship Este "gânglio central" da vida moral inglesa exprimiu-se naquilo que poderíamos designar por "um consenso ético pluralista", cuja expressão é conhecida de todos e ainda hoje é associada aos ingleses, embora tenha caído em desuso e não seja considerada "politicamente correcta": trata-se do código de conduta do gentleman.
Reconhecidamente de inspiração cristã, o código do gentleman é no entanto suficientemente flexível e ambíguo para poder albergar diferentes tonalidades e, sobretudo, uma conversação entre tonalidades. Mas essas tonalidades entram em controvérsia, por vezes em choque, sobre um consenso comum: o de que o relativismo é uma atitude de bárbaros e de que, algures para além de cada um de nós, existe uma lei moral que nos impõe deveres que são independentes do nosso capricho. O reconhecimento da existência desses deveres - que não são concebidos por ninguém, não são produto da "vontade geral", mas se impõem à vontade geral - o reconhecimento da existência desses deveres é o que distingue um gentleman.

Ideia de dever Gertrude Himmelfarb recorda que, quando foi perguntado a Darwin quais eram as consequências da sua teoria para a religião e a moral, este respondeu que "a ideia de Deus está para além do intelecto humano, mas a obrigação moral do homem permanece a que sempre foi: cumprir o seu dever". Macaulay, o grande historiador liberal e agnóstico, criticou o utilitarismo e defendeu a superioridade do cristianismo por este admitir a existência objectiva do dever. George Eliot, depois de todos os seus estudos sobre a filosofia alemã e francesa, acabou por regressar à sua religião original para tentar dar conta do mais importante facto da vida:
"O evangelismo trouxe à palpável existência e acção [...] essa ideia de dever, esse reconhecimento de algo que tem de ser vivido para além da mera satisfação do eu, e esse algo constitui o gânglio central da vida moral."

Burke e Newman Está talvez na altura de recordar que esta ideia, de que o dever não decorre da vontade, era central em Edmund Burke. E foi Burke que nos deixou uma das mais belas imagens sobre a educação de um gentleman:
"Ser educado num lugar de estima; não ver nada baixo ou sórdido desde a infância; ser ensinado a respeitar-se a si próprio: ser habituado à inspecção crítica do olhar público; [...] ter tempo para ler, reflectir, conversar; [...] ser ensinado a desprezar o perigo no cumprimento da honra e do dever; [...] possuir as virtudes da diligência, da ordem, da constância e da regularidade, e ter cultivado uma atenção habitual à justiça comutativa: estas são as circunstâncias dos homens que formam aquilo a que eu chamaria aristocracia natural [por contraste com aristocracia feudal], sem a qual uma nação não pode existir."
Estas palavras serviram de inspiração ao cardeal John Henry Newman, na sua obra hoje clássica "A Ideia de Universidade":
"É apropriado ser um gentleman, é apropriado ter um intelecto cultivado, um gosto delicado, uma mente cândida, leal e desapaixonada, uma atitude nobre e cortês na condução da vida - estas são as co-naturais qualidades de um largo conhecimento, e são o objecto de uma Universidade."

Irving Kristol: A imaginação moral

Irving Kristol afirmou que "o neoconservador é um liberal que foi assaltado pela realidade". Isto parece descrever a viagem intelectual de descoberta do neoconservadorismo por parte de sucessivas gerações de intelectuais oriundos da esquerda, sobretudo da esquerda liberal norte-americana. João Carlos Espada


Irving Kristol morreu em Washington, no passado dia 18 de Setembro. Uma avalanche de obituários e homenagens varreu os jornais de língua inglesa, sobretudo nos EUA, em Inglaterra e na Austrália. Entre nós, José Cutileiro dedicou--lhe no "Expresso" um excelente artigo, incidindo sobre o seu papel na definição da política externa norte-americana (onde foi particularmente influente na década de Ronald Reagan). Neste texto procurarei referir sobretudo a sua influência na recentragem das famílias políticas do centro-esquerda e do centro-direita, após a onda radical dos anos 60-70 e em confronto com ela.

Descrito muitas vezes como "o padrinho do neoconservadorismo", Irving Kristol afirmou, celebremente, que "o neoconservador é um liberal que foi assaltado pela realidade". Isto parece descrever com alguma precisão a viagem intelectual de descoberta do neoconservadorismo por parte de sucessivas gerações de intelectuais oriundos da esquerda, sobretudo da esquerda liberal norte-americana.

UM PROBLEMA CENTRAL Irving Kristol enfrentou na sua evolução intelectual um problema central do liberalismo, quer do liberalismo de esquerda, quer do de direita.

Podemos designá-lo como "o problema de John Stuart Mill", sobre o qual já foi produzida uma imensa literatura. Trata-se de saber se "o princípio muito simples" de Mill poderá de facto ser suficiente para manter viva e robusta uma sociedade livre. Este "princípio muito simples" é bem conhecido e foi enunciado por Stuart Mill no seu "On Liberty", de 1859: "[...] que a única finalidade pela qual o poder pode ser legitimamente exercido sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra a sua vontade, é prevenir o dano contra outros".

A dificuldade deste princípio não reside sobretudo na sua dimensão legal; reside na sua dimensão moral: devemos concluir daquele princípio que tudo o que um indivíduo faz na sua esfera privada, ou que os indivíduos fazem entre si de forma consensual, está para além do juízo moral de outros?

Trata-se de uma questão moral séria, independentemente de corresponder, ou não, à interpretação de Mill do seu próprio princípio. Tornou-se manifestamente a interpretação corrente do princípio de Mill, aquela que agora é sustentada, sob a forma de um dogma inquestionável, pela nossa cultura pública, em especial nos círculos académicos, mediáticos e das chamadas "ciências da educação". Esta realidade, tal como a designaria Irving Kristol, levanta graves problemas, sobretudo aos pais que tentam educar os seus filhos - e que se sentem "assaltados pela realidade". Deverão os pais estar preparados para ensinar aos seus filhos que todo o género de comportamento pessoal é equivalente a qualquer outro, desde que diga apenas respeito a si próprio ou se baseie no consentimento mútuo? Não estão, em regra não estão.

Pode ser legitimamente retorquido que o princípio de Mill não nos obriga a aceitar qualquer conduta como moralmente válida. Obriga-nos apenas a tolerar condutas distintas na medida em que não prejudiquem terceiros - o que constitui seguramente uma estimável presunção liberal. Contudo, permanece a questão moral principal: será que o liberalismo ou a liberdade assentam numa doutrina que é basicamente silenciosa acerca das virtudes ou do carácter de uma sociedade livre e de pessoas livres e responsáveis? Por outras palavras, será a "neutralidade moral" um alicerce do liberalismo ou da tradição da liberdade?

POLÍTICAS PÚBLICAS A resposta de Kristol foi um rotundo "não". E essa resposta foi emergindo a partir da análise das políticas públicas norte-americanas, a tal "realidade que assaltou os liberais". Essa realidade foi dissecada ao longo de quatro décadas, entre 1965 e 2005, na revista trimestral "The Public Interest", que Irving fundou com o distinto sociólogo (de centro-esquerda, por padrões americanos) Daniel Bell. Grandes autores, como James Q. Wilson, Nathan Glazer, Myron Magnet ou Charles Murray, analisaram o impacto da crescente intervenção social do Estado guiada pelo princípio da chamada "neutralidade moral". E deram conta dos devastadores efeitos na criação de uma underclass, a viver na dependência do chamado welfare state, sem família, sem hábitos de trabalho, sem capacidade de resistir à crescente delinquência juvenil, devido sobretudo ao desaparecimento da figura do pai em casa.

Sobre esta revista de pequena circulação (pouco mais de 10 mil assinantes) foi dito que mudou a América. A crítica à chamada "neutralidade moral" das políticas públicas produziu inicialmente uma reacção furiosa por parte da esquerda (onde, paradoxalmente, vários daqueles autores se encontravam). No entanto, a discussão fez o seu caminho e a reforma do welfare state pela administração Clinton, na década de 1990, foi em grande medida o sinal do triunfo das ideias neoconservadoras. Até certo ponto, pode ser dito que alguns dos New Democrats de Clinton, assim como alguns (menos) dos New Labour de Blair, eram neoconservadores de esquerda (no entanto, foram Ronald Reagan e Margaret Thatcher quem melhor expressou o neoconservadorismo, sobretudo em política externa, devido ao seu anticomunismo assumido e à sua defesa da expansão da democracia à escala global - um tema que não podemos abordar neste texto).

IMAGINAÇÃO MORAL A questão teórica mais importante que emerge do problema da neutralidade moral diz respeito aos fundamentos morais de uma sociedade livre, não apenas à orientação das políticas públicas. Isto conduziu Irving Kristol a apresentar uma defesa do chamado "capitalismo" distinta das de Hayek e Friedman, na medida em que não é omissa acerca da vida moral. Nesta matéria, Kristol foi assistido pelo extraordinário trabalho de sua mulher, Gertrude Himmelfarb, uma das mais respeitadas historiadoras da Inglaterra vitoriana. Ambos acentuaram o papel crucial que a chamada "imaginação moral" - uma expressão de Edmund Burke - desempenha na sustentação de uma sociedade livre.

Para Kristol, o chamado capitalismo, ou melhor, as sociedades livres do Ocidente, estiveram sempre amparadas pela cultura e pela moralidade - que, por vezes, designa como "a ética burguesa", ou "a ética protestante", ou ainda como "a tradição judaico-cristã".

No tempo em que estas ideias morais eram amplamente consensuais, é claro que era possível e intelectualmente tentador descrever a sociedade capitalista em termos meramente mecânicos, por assim dizer: como uma sociedade assente no "medo de uma morte violenta" (Hobbes), ou assente em "vícios privados, benefícios públicos" (Mandeville). Só percebemos a importância das referências morais quando estas se tornam controversas e começam a desgastar-se. Curiosamente, Raymond Aron costumava dizer que só percebemos o valor do crescimento económico - tal como o da liberdade - quando começamos a perdê-lo. O mesmo poderá ser dito da "ética burguesa".



CAPITAL MORAL A questão é praticamente incontornável: de onde vem esta "ética burguesa"? Não creio que Kristol tenha sido totalmente explícito acerca deste ponto. No entanto, a meu ver, foi perfeitamente explícito num aspecto crucial: o capital moral do qual o capitalismo, ou o liberalismo, ou a simples liberdade dependem não é "inventado" pelo liberalismo. De certo modo, esse capital moral estava lá e o capitalismo emergiu a partir dele de forma gradual, e não em confronto com ele.

Na verdade, as sociedades onde os regimes liberais foram mais bem-sucedidos - as anglófonas - foram precisamente aquelas em que a liberdade e o capital moral não estavam em confronto. Por outras palavras, uma ordem liberal será tanto mais bem-sucedida quanto menos procurar uma supremacia absoluta - quanto menos intentar a destruição de todos os pressupostos pré-liberais, só porque não foram deduzidos a partir de premissas liberais. Curiosamente, uma concepção similar pode ser descortinada em "A Vindication of Natural Society", de Edmund Burke, e em "Towards a Rational Theory of Tradition", de Karl Popper, nas suas "Conjectures and Refutations".

JANTAR EM WASHINGTON Conheci Irving Kristol e Gertrude Himmelfarb em Washington, em Maio de 1996, depois de lhes ter escrito várias cartas com perguntas sobre os seus livros.

Jantámos num restaurante do Watergate Building, onde moravam. Expliquei-lhes brevemente a minha evolução intelectual e os estudos com Popper e Dahrendorf. "A crítica de Popper a Platão nunca me convenceu inteiramente", disse Irving, "mas era um grande homem. Não sabia que ele e Dahrendorf também estavam preocupados com o relativismo. É uma boa notícia."

Depois perguntaram-me como via hoje o meu posicionamento político. Após longa hesitação, respondi: "Não sei ao certo, talvez um liberal vitoriano." Irving e Bea deram uma gargalhada em uníssono: "Um neoconservador não daria melhor resposta." Daqui nasceu uma longa amizade de que sou profundamente devedor.

Os anacronismos da civilidade britânica, João Carlos Espada

Na passada terça-feira, dia 3, quase literalmente 20 anos após a queda do Muro de Berlim, [9 de Novembro de 1989], o parlamento britânico homenageou a vida e obra de Ralf Dahrendorf, membro da Câmara dos Lordes, falecido a 18 de Junho deste ano

A cerimónia decorreu na Igreja de St. Margaret, na Abadia de Westminster, e foi conduzida pelo Reverendo Robert Wright, reitor daquela igreja e capelão do parlamento britânico. No jardim adjacente, milhares de pequenas cruzes com papoilas vermelhas de papel e nomes gravados eram cuidadosamente plantadas no relvado. Homenageavam os mortos em combate, sobretudo nas primeira e segunda guerras mundiais do século xx, e tinham sido enviadas pelos familiares ou amigos dos defuntos. Dentro da igreja, todos os presentes, que enchiam os lugares disponíveis, usavam a papoila vermelha na lapela.

VELHA INGLATERRA Ninguém se podia enganar: estávamos na velha Inglaterra. Aqui honram-se os mortos, e sobretudo os mortos em combate. O país orgulha-se de nunca ter perdido uma guerra, excepto com as colónias americanas, com as quais mantém uma "relação especial". E o homenageado no interior da igreja, The Lord Dahrendorf of Clare Market in the City of Westminster, tinha sido governante alemão, comissário europeu pela Alemanha, reitor da London School of Economics (ainda enquanto cidadão alemão), depois reitor do St. Antony's College, em Oxford, cavaleiro do Império Britânico e, finalmente, membro da Câmara dos Lordes.
A liturgia e o ritual também não deixavam dúvidas a ninguém. Exactamente à hora marcada, deram entrada, sucessivamente, a representante do primeiro-ministro, o Lord Mayor de Westminster e o Lord Speaker. O coro entrou em seguida e a cerimónia teve início. Foram feitas leituras do Antigo e do Novo Testamentos. Uma das filhas de Dahrendorf, Nicola, leu um belíssimo poema de T. S. Eliot. Tim Garton Ash e Sir Patrick Cormack, um deputado conservador, deixaram testemunhos pessoais (dos quais falarei a seguir). Às 12h55 em ponto, a hora anunciada no programa distribuído no início, a cerimónia terminou ao som das gaitas de foles do pelotão da rainha. E os sinos tocaram a rebate.

MURO DE BERLIM Timothy Garton Ash prestou um testemunho tocante e certeiro sobre a personalidade de Dahrendorf. Observou a coincidência com o 20.o aniversário da queda do Muro de Berlim. Lembrou como Dahrendorf tinha festejado com entusiasmo o fim do comunismo soviético. Completava-se a batalha pela liberdade que ele iniciara aos 15 anos, prisioneiro num campo de concentração nazi na sua Alemanha natal. Como Churchill, Dahrendorf fora sempre um antinazi e anticomunista primário.
Diferentemente de Churchill, Dahrendorf não era um conservador, mas um liberal. Fora como deputado do Partido Liberal Alemão que participara no governo de coligação social-democrata-liberal, liderado por Willy Brandt na década de 1960. Mas foi sempre um liberal muito especial.
Dahrendorf foi profundamente influenciado pelos anacronismos da tradição inglesa (como lhes chamou Garton Ash), com a qual contactara pela primeira vez enquanto estudante de doutoramento na London School of Economics, a seguir à guerra. Voltaria à LSE em 1975, enquanto reitor, após uma breve experiência na Comissão Europeia de Bruxelas, onde nunca se sentiu feliz - e da qual se demitiu.
Garton Ash recordou que o chanceler alemão Konrad Adenauer costumava dizer que há três tipos de europeus: os anti-europeus, os europeus, e os hipereuropeus. Dahrendorf era, simplesmente, um europeu. Não gostava da burocracia e das tendências federalistas da União Europeia. Mas era profundamente favorável ao mercado único e à cooperação descentralizada entre as nações soberanas da Europa.

ANACRONISMOS INGLESES Garton Ash falou dos anacronismos ingleses que Dahrendorf apreciava: o sentido de humor, por um lado, e uma profunda reverência pelo cerimonial e pelos rituais tradicionais, por outro; o hábito de permanente debate civilizado, por um lado, e o arreigado sentido de unidade patriótica, por outro.
A melhor ilustração destes anacronismos foi talvez o testemunho de um deputado conservador, Sir Patrick Cormack, na homenagem ao liberal Dahrendorf. Sir Patrick não se fez rogado. Começou logo por dizer que era de outro partido, o conservador, e que tinha muita honra em homenagear o liberal Dahrendorf. Até porque ambos punham o sentido de obrigação nacional e de dever cívico acima dos partidos, e não seguiam cegamente os respectivos partidos. Dahrendorf, aliás, era exemplar, enfatizou Sir Patrick. Tinha começado por se sentar na bancada liberal da Câmara dos Lordes (que viria a abandonar), mas sempre divergira dos liberais em três pontos essenciais: era contra o federalismo europeu, era contra a representação proporcional, era contra a eleição da Câmara dos Lordes.
Sir Patrick, aliás, confessou que tinha conhecido Dahrendorf há relativamente pouco tempo, cerca de 15 anos, pouco depois de este entrar na Câmara dos Lordes. E ficaram amigos porque Dahrendorf o convidara a participar num clube que fundara: "clube para a preservação de uma Câmara dos Lordes não eleita". Dahrendorf sabia muito bem que a democracia não se confunde com o governo da multidão. A tradição inglesa mostrava, para quem a quisesse estudar, que a liberdade é garantida em primeiro lugar pela Rule of Law e pelo equilíbrio de poderes, não pelo governo das massas.

RULE OF LAW À saída da igreja, no final da cerimónia, vagueei por Londres recordando Dahrendorf. Tinha estado com ele em Oxford pouco mais de um mês antes da sua morte, a 1 e 2 de Maio, para a celebração dos seus 80 anos.
Houve uma conferência ao fim da tarde, com Timothy Garton Ash, Fritz Stern e Habermas, seguida de High Table no St. Antony's College. Na manhã de sábado, dia 2, cerca de 20 pessoas reuniram-se à porta fechada com Dahrendorf - no Dahrendorf Room do Founders' Building - para conversar sobre a sua obra e as interrogações (não as respostas) que nos deixara. Dahrendorf tinha perdido a voz mas esteve sempre connosco. Ainda falou sobre a importância da Rule of Law e de impor aos imigrantes muçulmanos o respeito pela Rule of Law, interferindo o menos possível nos seus modos de vida e tradições peculiares.

ANOS MAIS FELIZES Foi só ao almoço desse dia que Danuta, mulher de Tim Garton Ash, me segredou que talvez fosse a última vez que o víamos. Estava doente e os médicos davam-lhe pouco tempo de vida. Foi no fim do almoço. Levantei-me a custo, dirigi-me a Dahrendorf e disse-lhe: "Sabe que mudou a minha vida para sempre. E eu fiquei grato para sempre." Abraçámo-nos. E eu saí, atordoado. Vagueei por Oxford, com os olhos em lágrimas. Passeei pelos sítios em que passeara durante quatro anos a fio, de 1990 a 1994, os anos mais felizes da minha vida, quando Dahrendorf era meu orientador de doutoramento.
Recebia-me no seu gabinete de 15 em 15 dias, por volta das 5 da tarde, sempre à hora marcada. Sempre de gravata e "brogues" pretos, a cor de Londres; eu usava castanhos, a cor de Oxford. Era uma dissonância ancestral que urgia preservar. Tomávamos chá. Discutíamos o ensaio ou parte da tese que eu lhe deixara dias antes. Por vezes, após o encontro, eu ainda lhe escrevia uma carta: tinha "descoberto" qualquer coisa, um novo argumento, um novo autor (em regra antigo), uma nova pergunta. Queria dar-lhe conta, saber o que pensava sobre a minha "descoberta". Ele respondia sempre, em regra no dia seguinte.

HÁBITOS BÁRBAROS Um dia recebi uma carta que começava assim: "Pela primeira vez, receberá uma carta não assinada por mim. É um hábito bárbaro a que terei de ceder desta vez porque tenho de ir a Londres com urgência." (Dahrendorf ditava as cartas para o gravador, que a secretária dactilografava na manhã seguinte, e ele depois assinava). Quando conversei com ele sobre a hipótese de ir ensinar para a América - o que Popper me impôs que aceitasse - Dahrendorf elogiou muito a América (era casado com uma americana), mas lamentou alguns hábitos bárbaros: por exemplo, têm de almoçar sempre em menos de uma hora. Verifiquei depois que, mais uma vez, Dahrendorf tinha razão.

MUDANÇAS IMPERCEPTÍVEIS Ralf Dahrendorf, juntamente com Karl Popper, mudaram para sempre a minha maneira de ver o mundo e a vida. Tomei consciência de algumas mudanças na altura em que ocorreram, enfrentei-as, pensei-as, hesitei, voltei atrás, e finalmente assumi-as. No entanto, muitas outras foram imperceptíveis, suaves, pequeníssimas. Não dei por elas quando se operavam. Mas estavam a operar-se. E ficaram comigo para sempre.
Não poderia resumi-las aqui. Mas aprendi com Dahrendorf e Popper que realmente sabemos muito pouco e cometemos muitos erros. Podemos, no entanto, aprender com os nossos erros. Ainda assim, saberemos sempre muito pouco, cada um de nós saberá sempre muito pouco. A civilização do Ocidente assenta na consciência desta nossa ignorância e imperfeição fundamentais. Assim, entramos em conversação uns com os outros, com os que já viveram, com os que vivem hoje, e com os que hão-de vir, como nos recordou Edmund Burke. A liberdade é a condição indispensável a esta conversação a várias vozes. Porém, a liberdade não é uma voz particular. É uma conversação. Supõe regras de conduta estritas, sobretudo de auto-controlo e estrito sentido de dever para com a liberdade. São regras de gentlemanship, que nenhum de nós consegue demonstrar racionalmente, mas que podemos justificar racionalmente. No entanto, ninguém as inventou. Herdámo-las em conversação com os nossos antepassados, que por sua vez fizeram o mesmo com os antepassados deles.

CONVERSAÇÃO A liberdade como conversação e as regras de conduta da gentlemaship lançam as suas raízes na civilização clássica de Atenas e Roma, e na tensão entre ela e a tradição judaico-cristã. A cultura política de língua inglesa foi a que melhor soube preservar essa ancestral conversação, porque recusou sempre a falsa escolha entre a estagnação e a revolução, entre o dogmatismo e o relativismo, entre os despotismos rivais do imobilismo e da inovação.

A propriedade do liberalismo, João Carlos Espada

Uma parte da tradição liberal desenvolve-se, desde o início, em oposição a valores que são caros à esquerda

É o liberalismo "de esquerda"? João Cardoso Rosas escreveu neste jornal, na quinta-feira passada, um artigo em que defende tal tese. Segundo ele, "o liberalismo é de esquerda", tanto do ponto de vista histórico como doutrinal e político-partidário. E o que diz tem, obviamente, pontos a seu favor. Na sua pré--história - podemos remontar às Luzes -, uma parte do liberalismo é efectivamente "de esquerda" (admitindo que esta classificação não envolve ilusão retrospectiva). Mais: cria-se contra a Igreja, símbolo da "direita". Do mesmo modo, o igualitarismo (indiscutivelmente de esquerda) apresenta-se como um seu aspecto importante. E certamente que nos partidos de direita predomina um conservadorismo que entra tendencialmente (embora não de forma necessária) em conflito com o liberalismo.
Mas a tradição liberal - que João Cardoso Rosas me parece por vezes identificar com a tradição progressista - desenvolve-se igualmente, a partir de certa altura, não só pela afirmação de uma auto-suficiência de princípio da sociedade civil, como contra o jacobinismo (e seus predecessores) e contra o igualitarismo radical. Quer dizer que a crítica liberal se faz em boa parte contra a esquerda. Um exemplo. Benjamin Constant sobre Mably: "Ele detestava a liberdade individual como se detesta um inimigo pessoal" (Tocqueville ecoará esta frase ao escrever sobre os fisiocratas: "Eles não odeiam apenas certos privilégios, a própria diversidade lhes é odiosa: adorariam a igualdade até na servidão"). E não vou ao século 20 porque, por razões óbvias, os exemplos são mais que muitos.
Uso "esquerda" e "direita" por facilidade. Porém, em relação aos grandes pensadores do político, será que essa designação faz realmente sentido? E não estou sequer a falar de Platão, Aristóteles, Maquiavel ou Hobbes. Falo de Locke, Montesquieu, Adam Smith, Hume, Burke, Benjamin Constant, Tocqueville, todos, cada um à sua maneira, liberais. São de esquerda ou de direita? E que quereria isso dizer?




É-se de direita ou de esquerda por compromisso com a acção, ou, ao avesso, por preguiça, nas margens do grande pensamento.




Se há alguma acepção em que "liberal" apresenta um sentido aproximadamente unívoco, é no que diz respeito ao quanto se preza a liberdade individual. O indivíduo (um conceito que o liberalismo ajudou a forjar) deve, dentro de contextos sempre variáveis, ter o máximo de liberdade relativamente à regimentação imposta pelo Estado, ou pelos costumes, ou pela opinião pública. Se a direita tem culpas antiliberais no cartório, a esquerda também as tem. E a direita - que estou longe de pretender representar - tem, desde há muito tempo, tanta legitimidade como a esquerda para as denunciar.

Duas culturas políticas

O contraste entre a tradição política anglo-americana e a tradição política francesa corresponde a diferenças entre duas grandes culturas políticas. A esquerda e a direita estão mais perto uma da outra no interior de cada uma dessas culturas políticas do que a esquerda está da esquerda e a direita está da direita em diferentes culturas políticas, João Carlos Espada

A existência de um "mistério inglês" tinha-me sido sugerida por Karl Popper, em conversa que aqui evoquei no ensaio inicial desta série, a 9 de Maio. Ilustrei esse mistério com a pergunta de Lorde Quinton: por que razão produziram as ideias de John Locke no século XVII inglês uma revolução predominantemente conservadora, ao passo que, quando no século seguinte atravessaram o Canal, produziram em França o efeito de álcool em estômago vazio?
Sugeri que esta pergunta exprime a especificidade da tradição política anglo--americana, que também pode ser descrita pelo "milagre da Inglaterra moderna" de Gertrude Himmelfarb e Elie Halevy: que a Inglaterra tenha realizado todas as revoluções do mundo moderno sem recorrer à revolução.
Encetámos então uma longa viagem através de vários autores que, de forma mais ou menos directa, se interessaram pelo mesmo mistério. Em seguida discutimos vários temas comuns às obras desses autores. Iniciamos hoje a apresentação de uma proposta interpretativa. Ela será desenvolvida neste e nos próximos quatro ensaios - que encerrarão esta série.

Duas culturas políticas. Esta proposta interpretativa sublinha que o contraste entre a tradição anglo-americana e a tradição francesa, ou continental, assenta em diferenças fundamentais entre as culturas políticas dessas duas tradições.
Por cultura política não pretendo designar uma doutrina política particular, como o socialismo, o liberalismo ou o conservadorismo. Também não me refiro ao ideário específico da chamada esquerda, ou da chamada direita, nem mesmo do chamado centro. Por cultura política pretendo designar algo que serve de base a essas divisões: algo que talvez pudéssemos designar como o idioma político, ou as categorias conceptuais, que fornecem as referências comuns ou o pano de fundo sobre o qual rivalizam as famílias políticas. Porque acredito que em todas as rivalidades políticas existem pressupostos comuns que de certa forma dão sentido a essas rivalidades.

Direita e esquerda. Basicamente, gostaria de sugerir que as diferenças entre a tradição política anglo-americana e a tradição política francesa correspondem a diferenças entre duas grandes culturas ou tradições políticas. E gostaria de sugerir que as diferenças entre essas duas culturas políticas são mais importantes que as diferenças entre esquerda e direita ou entre socialismo, liberalismo e conservadorismo. Diria mesmo que a esquerda e a direita estão mais perto uma da outra no interior de cada uma dessas culturas políticas do que a esquerda está da esquerda e a direita está da direita noutras culturas políticas.
Por outras palavras, as diferenças entre a tradição política anglo-americana e a tradição francesa devem-se menos a características peculiares que a características comuns da esquerda e da direita em cada uma dessas tradições. Em suma, existem conceitos-chave que são partilhados à esquerda e à direita no interior de cada tradição política.

Três conceitos-chave. Esses conceitos-chave são percepcionados de forma muito diferente, quer pela esquerda quer pela direita, quando se muda de tradição política. É ao conjunto desses conceitos-chave, desses pressupostos muitas vezes não explícitos, que chamo "cultura política".
Gostaria de sugerir que vale a pena observar comparativamente, em cada uma destas culturas políticas, três conceitos-chave: o conceito de revolução, o conceito de ordem social e o conceito de liberdade.

Dois gumes. Antes de prosseguir, devo no entanto sublinhar um esclarecimento que me parece fundamental. No argumento que vou apresentar referir-me-ei a estas duas culturas políticas como ideais-tipo, para usar a consagrada expressão de Max Weber. Não pretendo por isso subsumir toda a riqueza de cada uma daquelas culturas políticas nos traços vincados que vou utilizar. Pela mesma razão, não pretendo que todas as características da cultura política inglesa, ou anglo-americana, sejam positivas, nem que todas as da cultura política francesa sejam negativas.



Em boa verdade, como observou o meu amigo e mestre Seymour Martin Lipset, recentemente falecido, seria possível encontrar contrapartidas negativas para quase todos os traços positivos da cultura política anglo-americana [American Exceptionalism: A Double-Edged Sword, Nova Iorque/Londres: Norton, 1996].


Se ela tem, no entanto, uma vantagem conclusiva, esta reside na recusa da utopia e no reconhecimento da imperfeição inerente a todo o empreendimento humano. Gostaria por isso que o meu argumento, certamente elogioso para a cultura política anglo-americana, fosse interpretado no quadro falibilista que ela tanto ajudou a fomentar.

Revolução? Começando pelo primeiro conceito-chave, o de revolução, eu diria que ele talvez exprima de forma mais patente a diferença entre as duas culturas políticas.
Na tradição francesa, a ideia de revolução está associada a mudança, a progresso, a abertura de espírito. Isso não significa, obviamente, que todas as revoluções mereçam a aprovação de todas as pessoas; mas significa que o ónus da prova recaia sobre aqueles que são contra uma determinada revolução - e que estes, ao tentarem criticar uma dada revolução, estão desde logo numa posição defensiva. Em França fala-se de revolução como sinónimo de progresso: revolução no conhecimento científico, revolução nas artes, nos costumes, na tecnologia, na economia.
É mesmo provável que a expressão "Revolução Industrial", inicialmente aplicado a Inglaterra, seja de origem francesa. Na verdade, não houve nenhuma "Revolução Industrial" em Inglaterra: houve apenas um longo processo de modernização económica, tecnológica e social, que deu origem ao que chamamos sociedade industrial. Mas essa transformação foi apenas um agregado de inúmeras transformações graduais, descentralizadas e não centralmente dirigidas, cuja génese pode aliás nem ter estado na chamada burguesia, mas na própria aristocracia que iniciou a intensificação da exploração agrícola. Os estudos mais recentes apontam mesmo para as origens medievais e católicas do capitalismo ocidental.

Edmund Burke. Em Inglaterra, com efeito, o termo "revolução" é muito pouco utilizado e raramente com conotação positiva. Talvez um dos grandes responsáveis por este facto tenha sido Edmund Burke, o grande parlamentar whig irlandês que é dado como fundador do conservadorismo moderno, mas que, em Inglaterra, reúne a admiração de grandes figuras da direita e da esquerda.
O percurso de Edmund Burke foi ele próprio muito difícil de qualificar politicamente. Tendo sido considerado o líder intelectual do partido whig (que poderíamos designar como liberal, no sentido de que se opunha aos Tories, os conservadores), Burke destacou-se como defensor dos colonos americanos, dos direitos dos católicos irlandeses, e como severo crítico da administração inglesa na Índia, acusando-a de desrespeitar os direitos dos povos nativos. Mais do que isso, Burke foi um crítico acérrimo do que designou por governo de corte do rei George III, e um dos primeiros teorizadores do papel dos partidos políticos parlamentares modernos, um dos quais deveria sustentar o governo e o outro a oposição.
Só que, em 1789, quando todos esperavam que Burke desse o seu apoio à Revolução Francesa, como se inclinavam a fazer os seus pares liberais, ele desencadeou contra ela uma crítica feroz que ainda hoje constitui um clássico do pensamento político, as célebres "Reflexões sobre a Revolução em França", publicadas em 1790.

Arcaísmo revolucionário. A crítica de Burke à Revolução Francesa não é feita do ponto de vista da defesa do Antigo Regime ou do absolutismo real - o que seria impossível, dado Burke ter sido sempre um defensor do Parlamento e da limitação do poder político.
Burke criticou a Revolução Francesa por ela querer instaurar um novo absolutismo, ainda mais ilimitado que o anterior. E, sobretudo, criticou a ideia de revolução redentora em termos extraordinariamente modernos: observou que todas as acções políticas provocam efeitos não intencionais e não previsíveis; disse que todos os planos centrais, designadamente os planos de mudança social, falham por não conhecerem a sabedoria descentralizada inerente aos pequenos pelotões e à vida local.
Por outras palavras, Burke descredibilizou a própria ideia de revolução. Fê-lo, não do ponto de vista de manter tudo como está, mas do ponto de vista da maior inteligência da mudança gradual, descentralizada, por ensaio e erro. E foi aqui, na capacidade para adoptar a mudança gradual por ensaio e erro, que Burke situou a superioridade do regime parlamentar inglês.

Revolução relutante. Esta ideia da superioridade da mudança gradual relativamente à mudança revolucionária passou a fazer parte do património comum daquilo que designei por cultura política inglesa.
De forma imperceptível, esta ideia foi adoptada pela república americana, ainda que esta tenha sido aparentemente fundada por uma revolução. Só que - tal como na Inglaterra de 1688, e ao contrário da França de 1789 - a revolução americana de 1776 foi uma revolução relutante. Foi uma revolução liberal, sem dúvida, mas também conservadora, por comparação com a francesa. Visou restaurar liberdades e garantias constitucionais ancestrais, e não delinear uma nova sociedade a partir do zero.

Direitos e deveres: juntos ou separados?, João Carlos Espada

Por que razão hoje só falamos de direitos e nunca referimos os deveres? Por que motivo a lista de direitos não pára de crescer e insistimos em não mencionar qualquer dever?

Estas perguntas estiveram na base de um encontro, numa recente manhã de domingo, com representantes do Corpo Nacional de Escutas, liderados por Pedro Duarte Silva, seu secretário nacional pedagógico. Eles propõem-se estabelecer uma Carta dos Deveres do Homem e quiseram ouvir pessoas de fora. Isabel Jonnet e eu próprio acorremos ao convite e encetámos uma conversação, que eu achei muito estimulante.

IMPORTÂNCIA DOS DIREITOS Vale talvez a pena começar por recordar a importância dos direitos. Os direitos à vida, à liberdade e à busca da felicidade foram inscritos no início da Declaração de Independência norte-americana, de 1776. Embora muitos americanos julguem que os proclamaram pela primeira vez, a verdade é que os herdaram da tradição inglesa. A Magna Carta, de 1215, consagra um conjunto de direitos dos "ingleses livres". Afirma que esses direitos são incontornáveis e que o rei está obrigado a respeitá-los. Em 1689, o parlamento inglês aprovou uma nova declaração de direitos que é explicitamente inspirada na Magna Carta.

A ideia dos direitos das pessoas tem raízes na tradição greco-romana e na judaico-cristã, e desafia a visão da sociedade como dirigida pelo capricho dos governantes. De Atenas emergiu uma distinção fundamental entre um governo de homens e um governo de leis. Estas limitavam a vontade arbitrária de todos, incluindo dos governantes - que estavam eles próprios sujeitos à lei.

DUAS CIDADES O cristianismo introduziu uma ideia ainda mais importante: as próprias leis dos homens, ou leis positivas, estão limitadas por uma lei mais alta, a lei de Deus ou a lei natural. Isso sublinhou a existência de um dualismo essencial entre factos e padrões, expresso no mandamento "dar a César o que é de César, dar a Deus o que é de Deus". O cristão é cidadão de duas cidades, a cidade dos homens e a cidade de Deus. A cidade dos homens, que será sempre imperfeita e necessariamente limitada, não deve querer impor a sua vontade contra a lei da cidade de Deus, a lei natural. É esta lei natural que dá aos indivíduos certos direitos fundamentais, decorrentes da dignidade das pessoas, criadas por Deus à sua imagem e semelhança.

Quando a lei positiva - mesmo que tenha sido aprovada por todos ou pela maioria - infringe esses direitos naturais, o cristão pode apelar à lei natural. Daí decorrem os direitos da consciência da pessoa, cujo núcleo central reside no direito à vida e à liberdade, sobretudo à liberdade de consciência. Daqui emergem a ideia de direito de recurso e a ideia de dissidência. O indivíduo pode discordar de uma lei positiva e pode criticá-la, ainda que deva continuar a obedecer- -lhe, excepto em casos em que se justifique a objecção de consciência ou resistência mais radical.

Estes princípios foram claramente de-senvolvidos pelos autores da escolástica tardia, designadamente Molina e Suárez. John Locke apresentou-os, em versão modernizada, no século xvii. E a Declaração de Independência norte-americana deu-lhes publicidade mundial em 1776. A Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela ONU em 1948, consagrou a ideia de direitos da pessoa, embora numa versão muito mais ampla do que as versões antes referidas.

DIREITOS E DEVERES Na formulação tradicional dos direitos havia um claro pressuposto de que cada direito tinha um dever correspondente. Isso é patente se considerarmos os quatro direitos tradicionais à vida, à liberdade, à propriedade e ao contrato.

O direito à vida exige o dever de não atentar contra a vida. O direito à liberdade requer o dever de não exercer coerção. O direito à propriedade supõe o dever de não roubar. E o direito ao contrato implica o dever de não mentir, ou de não cometer fraude.

Todos estes deveres, curiosamente, estavam consagrados nos dez mandamentos e são sobretudo de natureza negativa: não matar, não roubar, não mentir. Por outras palavras, os direitos tradicionais geravam deveres de natureza negativa, de contenção, ou o dever de evitar certos tipos de acção.

NEGATIVOS E POSITIVOS Esta relação vai contudo alterar-se à medida que o conceito de direito se amplia. Isso é particularmente visível quando aos direitos negativos (também chamados civis e políticos) são adicionados direitos positivos, também chamados sociais. Quando se estabelece que todos têm direito à habitação, ou à educação, ou a férias pagas, não é muito claro quais são os deveres correspondentes e - sobretudo - a quem competem.

Enquanto, como vimos, cada um pode saber exactamente qual é o seu dever para respeitar o direito de outrem à vida, à liberdade, à propriedade e ao contrato, existe dificuldade em precisar qual é o dever de cada um para garantir o direito de outrem a casa própria, à educação ou a férias pagas. Dessa ambiguidade da relação entre direito e dever emerge uma entidade anónima que passa a ter o dever de fornecer direitos: o Estado.

Dir-se-á que já antes competia ao Estado a garantia dos direitos negativos, dado que devia intervir para punir as suas infracções. Mas há uma diferença importante. Tratava-se aí de intervir para punir infracções a direitos, ou, por outras palavras, para punir incumprimentos dos deveres correspondentes a esses direitos. Com os direitos sociais, o Estado passa a fornecer os direitos, passa a ser o principal sujeito dos deveres correspondentes aos direitos sociais. Em contrapartida, o recipiente dos direitos sociais não fica obrigado a qualquer dever. O direito à habitação, à educação, etc., não fica dependente de nenhum tipo de conduta particular por parte do recipiente.

INFLAÇÃO DE DIREITOS Esta imprecisão da relação entre direitos e deveres gera um fenómeno curioso. Por um lado, a lista de direitos não pára de crescer. Por outro lado, a lista de deveres não pára de diminuir, centrando-se cada vez mais no pagamento de impostos - que, por sua vez, não param de aumentar. Este fenómeno não constitui só por si um argumento conclusivo contra o conceito de direitos sociais. No entanto, como argumentei detalhadamente noutra oportunidade, constitui um dos poderosos argumentos a favor da delimitação criteriosa dos direitos sociais e das situações particulares em que os recipientes têm direito a reclamá-los.

Outro factor importante para explicar a inflação de direitos e o relativo definhamento dos deveres reside naquilo que Leo Strauss designou por três vagas da modernidade, na sua versão continental. Essas vagas - segundo Strauss, simbolizadas por Maquiavel e Hobbes, Rousseau, e Nietzsche - operaram uma ruptura gradual, mas profunda, com a tradição das filosofias clássica e cristã.

COMO DEVO VIVER? Ambas (as filosofias clássica e cristã) centravam a sua reflexão em torno da pergunta "como devo viver?". Eram filosofias centradas no conceito de dever e de virtude. Supunham ainda que os deveres e as virtudes eram objectivos, isto é, existiam independentemente da vontade ou da opinião dos indivíduos. Estes deviam tentar descobri-los, e essa descoberta assentava em regra na controvérsia racional. Embora essa descoberta não fosse suficiente para que as pessoas passassem a viver como deviam - haverá sempre um hiato entre o que é e o que deve ser -, os padrões de dever e virtude constituíam uma inspiração e um padrão, bem como um limite, para avaliar como as coisas se passavam realmente.

MAQUIAVEL Uma importante ruptura com esta tradição foi seguramente operada por Maquiavel. Disse ele que havia duas esferas totalmente independentes: o que deve ser e aquilo que é realmente. E anunciou que trataria da análise da política tal como ela é, e não como deve ser. E o que é a política realmente? Uma técnica para alcançar e manter o poder. Enquanto técnica, a política fica liberta de considerações morais (que, segundo Maquiavel, dizem respeito a outra esfera, a do que deve ser). O seu critério essencial passa a ser o da eficácia na obtenção e manutenção do poder.

ROUSSEAU Desfeita a tensão clássica e cristã entre ser e dever ser, coube a Rousseau dissolver por completo essa tensão. Isso foi conseguido pela famosa abstracção da "vontade geral". Esta emerge, ou representa, ou exprime (nunca alguém conseguiu decifrar isso conclusivamente) a vontade do todo - que, como tal, não pode errar. A vontade do todo passa então a ser, para Rousseau, simultaneamente o que é e o que deve ser.

Estamos perante uma profundíssima inversão da tradição clássica e cristã. O "dever ser" deixa de existir objectivamente e independentemente daquilo que é. O "dever ser" deixa de ser descoberto - passa a ser produto da vontade. O jacobinismo e o comunismo leram Rousseau à maneira deles e puseram em marcha a ditadura em nome da vontade do todo.
NIETZSCHE Em Rousseau, esta vontade é a de todos. Porém, uma vez que o "dever ser" passou a residir na vontade, não existe nenhuma razão objectiva para que esta vontade tenha de ser a de todos. Nietzsche viu isso com clareza e tirou as conclusões revolucionárias que o nazismo utilizou a seu favor. A diferença entre o bem e o mal não existe objectivamente. É pura convenção, inventada pelos fracos (talvez através da ficção da vontade geral) para restringir a acção dos fortes. Os fortes são os que têm a coragem de compreender a natureza arbitrária da distinção entre o bem e mal. Os fortes são os que têm a coragem de compreender que a única mensagem da vida - daquilo que é - é a vontade de poder.

VONTADE E PODER ILIMITADOS Se há um denominador comum a Maquiavel, Rousseau e Nietzsche, ele reside seguramente na emancipação da vontade e do poder dos severos constrangimentos morais que eram impostos pelas filosofias clássica e cristã. É dissolvido o dualismo de factos e padrões. Ficam apenas a vontade e o poder ilimitados. Poder e vontade do príncipe ou do estadista em Maquiavel. Poder e vontade das massas e dos iguais em Rousseau. Poder e vontade dos homens superiores em Nietzsche.

EDMUND BURKE Entre as inúmeras vozes que previram esta libertação da vontade e do poder ilimitados de todo e qualquer escrúpulo moral encontra-se Edmund Burke (aqui, bem como noutros pontos, afasto-me da perspectiva de Leo Strauss). Burke defendeu intransigentemente os direitos da tradição clássica e cristã, que considerava estarem expressos na Constituição inglesa (curiosamente, não escrita). Mas repetiu também insistentemente que os direitos não podiam ser separados dos deveres. E sublinhou que uns e outros não dependem da vontade. Existem objectivamente e é preciso descobri-los. Trata-se de uma mensagem crucial da civilização ocidental.