A Si, significa àquilo que há de mais profundo nele, Sócrates, o que há de profundamente humano, o que há de universal. Este “Si” é o “conhece-te a ti mesmo” socrático que significa arredar-se da periferia dos sentimentos e chegar ao centro de onde partem os veios do universal.
No Fédon de Platão há uma conflito entre a vontade do indivíduo, enquanto ente singular e o Ser universal. Não é conveniente estabelecer um paralelo com o conflito do âmbito teológico a que a humanidade assiste no alto da cruz entre o sofrimento do Homem ali e a missão de salvação universal, mas é possível ver que em ambos o ego do ente singular cede perante o carácter ôntico que em cada ser se manifesta ou que se manifesta em cada ser.
Deus me livre de esboçar qualquer tipo de inferências mútuas, mas há-de constatar-se que, em ambos, os discípulos o quiseram livrar da morte para si, e que ambos se libertaram atravessando a morte para se dar à humanidade, libertando-se da visão restrita dos discípulos para se entregar ao universal humano. É essa, aliás, o significado do tratamento de Sócrates a Xantipa, a esposa, como que, se desligando dela, se desligasse do que o prendia ao mundo material. Desse mundo material, faz parte o seu próprio corpo. Sócrates chama a atenção para o facto de ninguém o poder destruir ao destruir o seu corpo pois ele não era aquele corpo, que era corruptível, mas as suas próprias ideias, que, sendo incorruptíveis, ninguém as podia destruir.
Em qualquer caso, dos dois que são incomparáveis, o cálice da vida implicou antes o cálice da morte.
Sócrates, que nada sabia, como ele próprio dizia, sabia, ainda assim, que, em cada coisa, o que é necessário é partir em busca do essencial. Nessa busca de si mesmo, que permanece até hoje, vive a angústia humana de se compreender a si mesma, de se reencontrar, como o espírito hegeliano em busca de si mesmo. É nessa busca, em que o absoluto existe como epistemologia mas às vezes parece ainda mais longe que no momento de partida da caminhada humana, e quando foi esse momento de partida, que está a chave do mistério do humano: caminha eternamente sem nunca chegar e ainda assim nunca desistir de alcançar. Há, porém, momentos da ilusão da chegada, da utopia realizada, do fim da história, e esses momentos sabemos ao que conduziram: à desumanidade justamente porque é contrário à natureza da humanidade chegar ao momento do absoluto. Não seríamos humanos mas deuses e os deuses, como se sabe, julgam-se senhores do destino dos outros.
A justiça em si, a bondade em si, a beleza em si, como realidades ontológicas não podem ser detectadas pelos sentidos mas pelo intelecto. Nessa busca, está o sentido humano. O conhecimento é reminiscência de um mundo ontológico perfeito em si mesmo. A caminhada do homem em direcção de uma utopia é o desejo do reencontro de um mundo ontológico em que existem a justiça em si, a bondade em si, a beleza em si. A utopia deve consistir então em querer alcançar sem nunca ter alcançado. Politicamente, isto é a democracia. A ilusão de ter alcançado é o alicerce da Ditadura. Se a ideia platónica de Alma não admite que ela seja vencida pela morte, da qual se afasta, também a ideia de Liberdade não se deixa, contudo, perecer perante a morte da Democracia. A Liberdade permanece e conduz ao fim das ditaduras. Em qualquer caso, nunca se assiste à morte da Liberdade como ideia de si mesma. Beber a cicuta da busca para permanecer fiel a Si, eternamente participando da ideia da Liberdade. Este é o ensinamento de Sócrates através de Platão.
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