domingo, 22 de novembro de 2009

Direitos e deveres: juntos ou separados?, João Carlos Espada

Por que razão hoje só falamos de direitos e nunca referimos os deveres? Por que motivo a lista de direitos não pára de crescer e insistimos em não mencionar qualquer dever?

Estas perguntas estiveram na base de um encontro, numa recente manhã de domingo, com representantes do Corpo Nacional de Escutas, liderados por Pedro Duarte Silva, seu secretário nacional pedagógico. Eles propõem-se estabelecer uma Carta dos Deveres do Homem e quiseram ouvir pessoas de fora. Isabel Jonnet e eu próprio acorremos ao convite e encetámos uma conversação, que eu achei muito estimulante.

IMPORTÂNCIA DOS DIREITOS Vale talvez a pena começar por recordar a importância dos direitos. Os direitos à vida, à liberdade e à busca da felicidade foram inscritos no início da Declaração de Independência norte-americana, de 1776. Embora muitos americanos julguem que os proclamaram pela primeira vez, a verdade é que os herdaram da tradição inglesa. A Magna Carta, de 1215, consagra um conjunto de direitos dos "ingleses livres". Afirma que esses direitos são incontornáveis e que o rei está obrigado a respeitá-los. Em 1689, o parlamento inglês aprovou uma nova declaração de direitos que é explicitamente inspirada na Magna Carta.

A ideia dos direitos das pessoas tem raízes na tradição greco-romana e na judaico-cristã, e desafia a visão da sociedade como dirigida pelo capricho dos governantes. De Atenas emergiu uma distinção fundamental entre um governo de homens e um governo de leis. Estas limitavam a vontade arbitrária de todos, incluindo dos governantes - que estavam eles próprios sujeitos à lei.

DUAS CIDADES O cristianismo introduziu uma ideia ainda mais importante: as próprias leis dos homens, ou leis positivas, estão limitadas por uma lei mais alta, a lei de Deus ou a lei natural. Isso sublinhou a existência de um dualismo essencial entre factos e padrões, expresso no mandamento "dar a César o que é de César, dar a Deus o que é de Deus". O cristão é cidadão de duas cidades, a cidade dos homens e a cidade de Deus. A cidade dos homens, que será sempre imperfeita e necessariamente limitada, não deve querer impor a sua vontade contra a lei da cidade de Deus, a lei natural. É esta lei natural que dá aos indivíduos certos direitos fundamentais, decorrentes da dignidade das pessoas, criadas por Deus à sua imagem e semelhança.

Quando a lei positiva - mesmo que tenha sido aprovada por todos ou pela maioria - infringe esses direitos naturais, o cristão pode apelar à lei natural. Daí decorrem os direitos da consciência da pessoa, cujo núcleo central reside no direito à vida e à liberdade, sobretudo à liberdade de consciência. Daqui emergem a ideia de direito de recurso e a ideia de dissidência. O indivíduo pode discordar de uma lei positiva e pode criticá-la, ainda que deva continuar a obedecer- -lhe, excepto em casos em que se justifique a objecção de consciência ou resistência mais radical.

Estes princípios foram claramente de-senvolvidos pelos autores da escolástica tardia, designadamente Molina e Suárez. John Locke apresentou-os, em versão modernizada, no século xvii. E a Declaração de Independência norte-americana deu-lhes publicidade mundial em 1776. A Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela ONU em 1948, consagrou a ideia de direitos da pessoa, embora numa versão muito mais ampla do que as versões antes referidas.

DIREITOS E DEVERES Na formulação tradicional dos direitos havia um claro pressuposto de que cada direito tinha um dever correspondente. Isso é patente se considerarmos os quatro direitos tradicionais à vida, à liberdade, à propriedade e ao contrato.

O direito à vida exige o dever de não atentar contra a vida. O direito à liberdade requer o dever de não exercer coerção. O direito à propriedade supõe o dever de não roubar. E o direito ao contrato implica o dever de não mentir, ou de não cometer fraude.

Todos estes deveres, curiosamente, estavam consagrados nos dez mandamentos e são sobretudo de natureza negativa: não matar, não roubar, não mentir. Por outras palavras, os direitos tradicionais geravam deveres de natureza negativa, de contenção, ou o dever de evitar certos tipos de acção.

NEGATIVOS E POSITIVOS Esta relação vai contudo alterar-se à medida que o conceito de direito se amplia. Isso é particularmente visível quando aos direitos negativos (também chamados civis e políticos) são adicionados direitos positivos, também chamados sociais. Quando se estabelece que todos têm direito à habitação, ou à educação, ou a férias pagas, não é muito claro quais são os deveres correspondentes e - sobretudo - a quem competem.

Enquanto, como vimos, cada um pode saber exactamente qual é o seu dever para respeitar o direito de outrem à vida, à liberdade, à propriedade e ao contrato, existe dificuldade em precisar qual é o dever de cada um para garantir o direito de outrem a casa própria, à educação ou a férias pagas. Dessa ambiguidade da relação entre direito e dever emerge uma entidade anónima que passa a ter o dever de fornecer direitos: o Estado.

Dir-se-á que já antes competia ao Estado a garantia dos direitos negativos, dado que devia intervir para punir as suas infracções. Mas há uma diferença importante. Tratava-se aí de intervir para punir infracções a direitos, ou, por outras palavras, para punir incumprimentos dos deveres correspondentes a esses direitos. Com os direitos sociais, o Estado passa a fornecer os direitos, passa a ser o principal sujeito dos deveres correspondentes aos direitos sociais. Em contrapartida, o recipiente dos direitos sociais não fica obrigado a qualquer dever. O direito à habitação, à educação, etc., não fica dependente de nenhum tipo de conduta particular por parte do recipiente.

INFLAÇÃO DE DIREITOS Esta imprecisão da relação entre direitos e deveres gera um fenómeno curioso. Por um lado, a lista de direitos não pára de crescer. Por outro lado, a lista de deveres não pára de diminuir, centrando-se cada vez mais no pagamento de impostos - que, por sua vez, não param de aumentar. Este fenómeno não constitui só por si um argumento conclusivo contra o conceito de direitos sociais. No entanto, como argumentei detalhadamente noutra oportunidade, constitui um dos poderosos argumentos a favor da delimitação criteriosa dos direitos sociais e das situações particulares em que os recipientes têm direito a reclamá-los.

Outro factor importante para explicar a inflação de direitos e o relativo definhamento dos deveres reside naquilo que Leo Strauss designou por três vagas da modernidade, na sua versão continental. Essas vagas - segundo Strauss, simbolizadas por Maquiavel e Hobbes, Rousseau, e Nietzsche - operaram uma ruptura gradual, mas profunda, com a tradição das filosofias clássica e cristã.

COMO DEVO VIVER? Ambas (as filosofias clássica e cristã) centravam a sua reflexão em torno da pergunta "como devo viver?". Eram filosofias centradas no conceito de dever e de virtude. Supunham ainda que os deveres e as virtudes eram objectivos, isto é, existiam independentemente da vontade ou da opinião dos indivíduos. Estes deviam tentar descobri-los, e essa descoberta assentava em regra na controvérsia racional. Embora essa descoberta não fosse suficiente para que as pessoas passassem a viver como deviam - haverá sempre um hiato entre o que é e o que deve ser -, os padrões de dever e virtude constituíam uma inspiração e um padrão, bem como um limite, para avaliar como as coisas se passavam realmente.

MAQUIAVEL Uma importante ruptura com esta tradição foi seguramente operada por Maquiavel. Disse ele que havia duas esferas totalmente independentes: o que deve ser e aquilo que é realmente. E anunciou que trataria da análise da política tal como ela é, e não como deve ser. E o que é a política realmente? Uma técnica para alcançar e manter o poder. Enquanto técnica, a política fica liberta de considerações morais (que, segundo Maquiavel, dizem respeito a outra esfera, a do que deve ser). O seu critério essencial passa a ser o da eficácia na obtenção e manutenção do poder.

ROUSSEAU Desfeita a tensão clássica e cristã entre ser e dever ser, coube a Rousseau dissolver por completo essa tensão. Isso foi conseguido pela famosa abstracção da "vontade geral". Esta emerge, ou representa, ou exprime (nunca alguém conseguiu decifrar isso conclusivamente) a vontade do todo - que, como tal, não pode errar. A vontade do todo passa então a ser, para Rousseau, simultaneamente o que é e o que deve ser.

Estamos perante uma profundíssima inversão da tradição clássica e cristã. O "dever ser" deixa de existir objectivamente e independentemente daquilo que é. O "dever ser" deixa de ser descoberto - passa a ser produto da vontade. O jacobinismo e o comunismo leram Rousseau à maneira deles e puseram em marcha a ditadura em nome da vontade do todo.
NIETZSCHE Em Rousseau, esta vontade é a de todos. Porém, uma vez que o "dever ser" passou a residir na vontade, não existe nenhuma razão objectiva para que esta vontade tenha de ser a de todos. Nietzsche viu isso com clareza e tirou as conclusões revolucionárias que o nazismo utilizou a seu favor. A diferença entre o bem e o mal não existe objectivamente. É pura convenção, inventada pelos fracos (talvez através da ficção da vontade geral) para restringir a acção dos fortes. Os fortes são os que têm a coragem de compreender a natureza arbitrária da distinção entre o bem e mal. Os fortes são os que têm a coragem de compreender que a única mensagem da vida - daquilo que é - é a vontade de poder.

VONTADE E PODER ILIMITADOS Se há um denominador comum a Maquiavel, Rousseau e Nietzsche, ele reside seguramente na emancipação da vontade e do poder dos severos constrangimentos morais que eram impostos pelas filosofias clássica e cristã. É dissolvido o dualismo de factos e padrões. Ficam apenas a vontade e o poder ilimitados. Poder e vontade do príncipe ou do estadista em Maquiavel. Poder e vontade das massas e dos iguais em Rousseau. Poder e vontade dos homens superiores em Nietzsche.

EDMUND BURKE Entre as inúmeras vozes que previram esta libertação da vontade e do poder ilimitados de todo e qualquer escrúpulo moral encontra-se Edmund Burke (aqui, bem como noutros pontos, afasto-me da perspectiva de Leo Strauss). Burke defendeu intransigentemente os direitos da tradição clássica e cristã, que considerava estarem expressos na Constituição inglesa (curiosamente, não escrita). Mas repetiu também insistentemente que os direitos não podiam ser separados dos deveres. E sublinhou que uns e outros não dependem da vontade. Existem objectivamente e é preciso descobri-los. Trata-se de uma mensagem crucial da civilização ocidental.

Nenhum comentário: