Na passada terça-feira, dia 3, quase literalmente 20 anos após a queda do Muro de Berlim, [9 de Novembro de 1989], o parlamento britânico homenageou a vida e obra de Ralf Dahrendorf, membro da Câmara dos Lordes, falecido a 18 de Junho deste ano
A cerimónia decorreu na Igreja de St. Margaret, na Abadia de Westminster, e foi conduzida pelo Reverendo Robert Wright, reitor daquela igreja e capelão do parlamento britânico. No jardim adjacente, milhares de pequenas cruzes com papoilas vermelhas de papel e nomes gravados eram cuidadosamente plantadas no relvado. Homenageavam os mortos em combate, sobretudo nas primeira e segunda guerras mundiais do século xx, e tinham sido enviadas pelos familiares ou amigos dos defuntos. Dentro da igreja, todos os presentes, que enchiam os lugares disponíveis, usavam a papoila vermelha na lapela.
VELHA INGLATERRA Ninguém se podia enganar: estávamos na velha Inglaterra. Aqui honram-se os mortos, e sobretudo os mortos em combate. O país orgulha-se de nunca ter perdido uma guerra, excepto com as colónias americanas, com as quais mantém uma "relação especial". E o homenageado no interior da igreja, The Lord Dahrendorf of Clare Market in the City of Westminster, tinha sido governante alemão, comissário europeu pela Alemanha, reitor da London School of Economics (ainda enquanto cidadão alemão), depois reitor do St. Antony's College, em Oxford, cavaleiro do Império Britânico e, finalmente, membro da Câmara dos Lordes.
A liturgia e o ritual também não deixavam dúvidas a ninguém. Exactamente à hora marcada, deram entrada, sucessivamente, a representante do primeiro-ministro, o Lord Mayor de Westminster e o Lord Speaker. O coro entrou em seguida e a cerimónia teve início. Foram feitas leituras do Antigo e do Novo Testamentos. Uma das filhas de Dahrendorf, Nicola, leu um belíssimo poema de T. S. Eliot. Tim Garton Ash e Sir Patrick Cormack, um deputado conservador, deixaram testemunhos pessoais (dos quais falarei a seguir). Às 12h55 em ponto, a hora anunciada no programa distribuído no início, a cerimónia terminou ao som das gaitas de foles do pelotão da rainha. E os sinos tocaram a rebate.
MURO DE BERLIM Timothy Garton Ash prestou um testemunho tocante e certeiro sobre a personalidade de Dahrendorf. Observou a coincidência com o 20.o aniversário da queda do Muro de Berlim. Lembrou como Dahrendorf tinha festejado com entusiasmo o fim do comunismo soviético. Completava-se a batalha pela liberdade que ele iniciara aos 15 anos, prisioneiro num campo de concentração nazi na sua Alemanha natal. Como Churchill, Dahrendorf fora sempre um antinazi e anticomunista primário.
Diferentemente de Churchill, Dahrendorf não era um conservador, mas um liberal. Fora como deputado do Partido Liberal Alemão que participara no governo de coligação social-democrata-liberal, liderado por Willy Brandt na década de 1960. Mas foi sempre um liberal muito especial.
Dahrendorf foi profundamente influenciado pelos anacronismos da tradição inglesa (como lhes chamou Garton Ash), com a qual contactara pela primeira vez enquanto estudante de doutoramento na London School of Economics, a seguir à guerra. Voltaria à LSE em 1975, enquanto reitor, após uma breve experiência na Comissão Europeia de Bruxelas, onde nunca se sentiu feliz - e da qual se demitiu.
Garton Ash recordou que o chanceler alemão Konrad Adenauer costumava dizer que há três tipos de europeus: os anti-europeus, os europeus, e os hipereuropeus. Dahrendorf era, simplesmente, um europeu. Não gostava da burocracia e das tendências federalistas da União Europeia. Mas era profundamente favorável ao mercado único e à cooperação descentralizada entre as nações soberanas da Europa.
ANACRONISMOS INGLESES Garton Ash falou dos anacronismos ingleses que Dahrendorf apreciava: o sentido de humor, por um lado, e uma profunda reverência pelo cerimonial e pelos rituais tradicionais, por outro; o hábito de permanente debate civilizado, por um lado, e o arreigado sentido de unidade patriótica, por outro.
A melhor ilustração destes anacronismos foi talvez o testemunho de um deputado conservador, Sir Patrick Cormack, na homenagem ao liberal Dahrendorf. Sir Patrick não se fez rogado. Começou logo por dizer que era de outro partido, o conservador, e que tinha muita honra em homenagear o liberal Dahrendorf. Até porque ambos punham o sentido de obrigação nacional e de dever cívico acima dos partidos, e não seguiam cegamente os respectivos partidos. Dahrendorf, aliás, era exemplar, enfatizou Sir Patrick. Tinha começado por se sentar na bancada liberal da Câmara dos Lordes (que viria a abandonar), mas sempre divergira dos liberais em três pontos essenciais: era contra o federalismo europeu, era contra a representação proporcional, era contra a eleição da Câmara dos Lordes.
Sir Patrick, aliás, confessou que tinha conhecido Dahrendorf há relativamente pouco tempo, cerca de 15 anos, pouco depois de este entrar na Câmara dos Lordes. E ficaram amigos porque Dahrendorf o convidara a participar num clube que fundara: "clube para a preservação de uma Câmara dos Lordes não eleita". Dahrendorf sabia muito bem que a democracia não se confunde com o governo da multidão. A tradição inglesa mostrava, para quem a quisesse estudar, que a liberdade é garantida em primeiro lugar pela Rule of Law e pelo equilíbrio de poderes, não pelo governo das massas.
RULE OF LAW À saída da igreja, no final da cerimónia, vagueei por Londres recordando Dahrendorf. Tinha estado com ele em Oxford pouco mais de um mês antes da sua morte, a 1 e 2 de Maio, para a celebração dos seus 80 anos.
Houve uma conferência ao fim da tarde, com Timothy Garton Ash, Fritz Stern e Habermas, seguida de High Table no St. Antony's College. Na manhã de sábado, dia 2, cerca de 20 pessoas reuniram-se à porta fechada com Dahrendorf - no Dahrendorf Room do Founders' Building - para conversar sobre a sua obra e as interrogações (não as respostas) que nos deixara. Dahrendorf tinha perdido a voz mas esteve sempre connosco. Ainda falou sobre a importância da Rule of Law e de impor aos imigrantes muçulmanos o respeito pela Rule of Law, interferindo o menos possível nos seus modos de vida e tradições peculiares.
ANOS MAIS FELIZES Foi só ao almoço desse dia que Danuta, mulher de Tim Garton Ash, me segredou que talvez fosse a última vez que o víamos. Estava doente e os médicos davam-lhe pouco tempo de vida. Foi no fim do almoço. Levantei-me a custo, dirigi-me a Dahrendorf e disse-lhe: "Sabe que mudou a minha vida para sempre. E eu fiquei grato para sempre." Abraçámo-nos. E eu saí, atordoado. Vagueei por Oxford, com os olhos em lágrimas. Passeei pelos sítios em que passeara durante quatro anos a fio, de 1990 a 1994, os anos mais felizes da minha vida, quando Dahrendorf era meu orientador de doutoramento.
Recebia-me no seu gabinete de 15 em 15 dias, por volta das 5 da tarde, sempre à hora marcada. Sempre de gravata e "brogues" pretos, a cor de Londres; eu usava castanhos, a cor de Oxford. Era uma dissonância ancestral que urgia preservar. Tomávamos chá. Discutíamos o ensaio ou parte da tese que eu lhe deixara dias antes. Por vezes, após o encontro, eu ainda lhe escrevia uma carta: tinha "descoberto" qualquer coisa, um novo argumento, um novo autor (em regra antigo), uma nova pergunta. Queria dar-lhe conta, saber o que pensava sobre a minha "descoberta". Ele respondia sempre, em regra no dia seguinte.
HÁBITOS BÁRBAROS Um dia recebi uma carta que começava assim: "Pela primeira vez, receberá uma carta não assinada por mim. É um hábito bárbaro a que terei de ceder desta vez porque tenho de ir a Londres com urgência." (Dahrendorf ditava as cartas para o gravador, que a secretária dactilografava na manhã seguinte, e ele depois assinava). Quando conversei com ele sobre a hipótese de ir ensinar para a América - o que Popper me impôs que aceitasse - Dahrendorf elogiou muito a América (era casado com uma americana), mas lamentou alguns hábitos bárbaros: por exemplo, têm de almoçar sempre em menos de uma hora. Verifiquei depois que, mais uma vez, Dahrendorf tinha razão.
MUDANÇAS IMPERCEPTÍVEIS Ralf Dahrendorf, juntamente com Karl Popper, mudaram para sempre a minha maneira de ver o mundo e a vida. Tomei consciência de algumas mudanças na altura em que ocorreram, enfrentei-as, pensei-as, hesitei, voltei atrás, e finalmente assumi-as. No entanto, muitas outras foram imperceptíveis, suaves, pequeníssimas. Não dei por elas quando se operavam. Mas estavam a operar-se. E ficaram comigo para sempre.
Não poderia resumi-las aqui. Mas aprendi com Dahrendorf e Popper que realmente sabemos muito pouco e cometemos muitos erros. Podemos, no entanto, aprender com os nossos erros. Ainda assim, saberemos sempre muito pouco, cada um de nós saberá sempre muito pouco. A civilização do Ocidente assenta na consciência desta nossa ignorância e imperfeição fundamentais. Assim, entramos em conversação uns com os outros, com os que já viveram, com os que vivem hoje, e com os que hão-de vir, como nos recordou Edmund Burke. A liberdade é a condição indispensável a esta conversação a várias vozes. Porém, a liberdade não é uma voz particular. É uma conversação. Supõe regras de conduta estritas, sobretudo de auto-controlo e estrito sentido de dever para com a liberdade. São regras de gentlemanship, que nenhum de nós consegue demonstrar racionalmente, mas que podemos justificar racionalmente. No entanto, ninguém as inventou. Herdámo-las em conversação com os nossos antepassados, que por sua vez fizeram o mesmo com os antepassados deles.
CONVERSAÇÃO A liberdade como conversação e as regras de conduta da gentlemaship lançam as suas raízes na civilização clássica de Atenas e Roma, e na tensão entre ela e a tradição judaico-cristã. A cultura política de língua inglesa foi a que melhor soube preservar essa ancestral conversação, porque recusou sempre a falsa escolha entre a estagnação e a revolução, entre o dogmatismo e o relativismo, entre os despotismos rivais do imobilismo e da inovação.
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