domingo, 22 de novembro de 2009

Irving Kristol: A imaginação moral

Irving Kristol afirmou que "o neoconservador é um liberal que foi assaltado pela realidade". Isto parece descrever a viagem intelectual de descoberta do neoconservadorismo por parte de sucessivas gerações de intelectuais oriundos da esquerda, sobretudo da esquerda liberal norte-americana. João Carlos Espada


Irving Kristol morreu em Washington, no passado dia 18 de Setembro. Uma avalanche de obituários e homenagens varreu os jornais de língua inglesa, sobretudo nos EUA, em Inglaterra e na Austrália. Entre nós, José Cutileiro dedicou--lhe no "Expresso" um excelente artigo, incidindo sobre o seu papel na definição da política externa norte-americana (onde foi particularmente influente na década de Ronald Reagan). Neste texto procurarei referir sobretudo a sua influência na recentragem das famílias políticas do centro-esquerda e do centro-direita, após a onda radical dos anos 60-70 e em confronto com ela.

Descrito muitas vezes como "o padrinho do neoconservadorismo", Irving Kristol afirmou, celebremente, que "o neoconservador é um liberal que foi assaltado pela realidade". Isto parece descrever com alguma precisão a viagem intelectual de descoberta do neoconservadorismo por parte de sucessivas gerações de intelectuais oriundos da esquerda, sobretudo da esquerda liberal norte-americana.

UM PROBLEMA CENTRAL Irving Kristol enfrentou na sua evolução intelectual um problema central do liberalismo, quer do liberalismo de esquerda, quer do de direita.

Podemos designá-lo como "o problema de John Stuart Mill", sobre o qual já foi produzida uma imensa literatura. Trata-se de saber se "o princípio muito simples" de Mill poderá de facto ser suficiente para manter viva e robusta uma sociedade livre. Este "princípio muito simples" é bem conhecido e foi enunciado por Stuart Mill no seu "On Liberty", de 1859: "[...] que a única finalidade pela qual o poder pode ser legitimamente exercido sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra a sua vontade, é prevenir o dano contra outros".

A dificuldade deste princípio não reside sobretudo na sua dimensão legal; reside na sua dimensão moral: devemos concluir daquele princípio que tudo o que um indivíduo faz na sua esfera privada, ou que os indivíduos fazem entre si de forma consensual, está para além do juízo moral de outros?

Trata-se de uma questão moral séria, independentemente de corresponder, ou não, à interpretação de Mill do seu próprio princípio. Tornou-se manifestamente a interpretação corrente do princípio de Mill, aquela que agora é sustentada, sob a forma de um dogma inquestionável, pela nossa cultura pública, em especial nos círculos académicos, mediáticos e das chamadas "ciências da educação". Esta realidade, tal como a designaria Irving Kristol, levanta graves problemas, sobretudo aos pais que tentam educar os seus filhos - e que se sentem "assaltados pela realidade". Deverão os pais estar preparados para ensinar aos seus filhos que todo o género de comportamento pessoal é equivalente a qualquer outro, desde que diga apenas respeito a si próprio ou se baseie no consentimento mútuo? Não estão, em regra não estão.

Pode ser legitimamente retorquido que o princípio de Mill não nos obriga a aceitar qualquer conduta como moralmente válida. Obriga-nos apenas a tolerar condutas distintas na medida em que não prejudiquem terceiros - o que constitui seguramente uma estimável presunção liberal. Contudo, permanece a questão moral principal: será que o liberalismo ou a liberdade assentam numa doutrina que é basicamente silenciosa acerca das virtudes ou do carácter de uma sociedade livre e de pessoas livres e responsáveis? Por outras palavras, será a "neutralidade moral" um alicerce do liberalismo ou da tradição da liberdade?

POLÍTICAS PÚBLICAS A resposta de Kristol foi um rotundo "não". E essa resposta foi emergindo a partir da análise das políticas públicas norte-americanas, a tal "realidade que assaltou os liberais". Essa realidade foi dissecada ao longo de quatro décadas, entre 1965 e 2005, na revista trimestral "The Public Interest", que Irving fundou com o distinto sociólogo (de centro-esquerda, por padrões americanos) Daniel Bell. Grandes autores, como James Q. Wilson, Nathan Glazer, Myron Magnet ou Charles Murray, analisaram o impacto da crescente intervenção social do Estado guiada pelo princípio da chamada "neutralidade moral". E deram conta dos devastadores efeitos na criação de uma underclass, a viver na dependência do chamado welfare state, sem família, sem hábitos de trabalho, sem capacidade de resistir à crescente delinquência juvenil, devido sobretudo ao desaparecimento da figura do pai em casa.

Sobre esta revista de pequena circulação (pouco mais de 10 mil assinantes) foi dito que mudou a América. A crítica à chamada "neutralidade moral" das políticas públicas produziu inicialmente uma reacção furiosa por parte da esquerda (onde, paradoxalmente, vários daqueles autores se encontravam). No entanto, a discussão fez o seu caminho e a reforma do welfare state pela administração Clinton, na década de 1990, foi em grande medida o sinal do triunfo das ideias neoconservadoras. Até certo ponto, pode ser dito que alguns dos New Democrats de Clinton, assim como alguns (menos) dos New Labour de Blair, eram neoconservadores de esquerda (no entanto, foram Ronald Reagan e Margaret Thatcher quem melhor expressou o neoconservadorismo, sobretudo em política externa, devido ao seu anticomunismo assumido e à sua defesa da expansão da democracia à escala global - um tema que não podemos abordar neste texto).

IMAGINAÇÃO MORAL A questão teórica mais importante que emerge do problema da neutralidade moral diz respeito aos fundamentos morais de uma sociedade livre, não apenas à orientação das políticas públicas. Isto conduziu Irving Kristol a apresentar uma defesa do chamado "capitalismo" distinta das de Hayek e Friedman, na medida em que não é omissa acerca da vida moral. Nesta matéria, Kristol foi assistido pelo extraordinário trabalho de sua mulher, Gertrude Himmelfarb, uma das mais respeitadas historiadoras da Inglaterra vitoriana. Ambos acentuaram o papel crucial que a chamada "imaginação moral" - uma expressão de Edmund Burke - desempenha na sustentação de uma sociedade livre.

Para Kristol, o chamado capitalismo, ou melhor, as sociedades livres do Ocidente, estiveram sempre amparadas pela cultura e pela moralidade - que, por vezes, designa como "a ética burguesa", ou "a ética protestante", ou ainda como "a tradição judaico-cristã".

No tempo em que estas ideias morais eram amplamente consensuais, é claro que era possível e intelectualmente tentador descrever a sociedade capitalista em termos meramente mecânicos, por assim dizer: como uma sociedade assente no "medo de uma morte violenta" (Hobbes), ou assente em "vícios privados, benefícios públicos" (Mandeville). Só percebemos a importância das referências morais quando estas se tornam controversas e começam a desgastar-se. Curiosamente, Raymond Aron costumava dizer que só percebemos o valor do crescimento económico - tal como o da liberdade - quando começamos a perdê-lo. O mesmo poderá ser dito da "ética burguesa".



CAPITAL MORAL A questão é praticamente incontornável: de onde vem esta "ética burguesa"? Não creio que Kristol tenha sido totalmente explícito acerca deste ponto. No entanto, a meu ver, foi perfeitamente explícito num aspecto crucial: o capital moral do qual o capitalismo, ou o liberalismo, ou a simples liberdade dependem não é "inventado" pelo liberalismo. De certo modo, esse capital moral estava lá e o capitalismo emergiu a partir dele de forma gradual, e não em confronto com ele.

Na verdade, as sociedades onde os regimes liberais foram mais bem-sucedidos - as anglófonas - foram precisamente aquelas em que a liberdade e o capital moral não estavam em confronto. Por outras palavras, uma ordem liberal será tanto mais bem-sucedida quanto menos procurar uma supremacia absoluta - quanto menos intentar a destruição de todos os pressupostos pré-liberais, só porque não foram deduzidos a partir de premissas liberais. Curiosamente, uma concepção similar pode ser descortinada em "A Vindication of Natural Society", de Edmund Burke, e em "Towards a Rational Theory of Tradition", de Karl Popper, nas suas "Conjectures and Refutations".

JANTAR EM WASHINGTON Conheci Irving Kristol e Gertrude Himmelfarb em Washington, em Maio de 1996, depois de lhes ter escrito várias cartas com perguntas sobre os seus livros.

Jantámos num restaurante do Watergate Building, onde moravam. Expliquei-lhes brevemente a minha evolução intelectual e os estudos com Popper e Dahrendorf. "A crítica de Popper a Platão nunca me convenceu inteiramente", disse Irving, "mas era um grande homem. Não sabia que ele e Dahrendorf também estavam preocupados com o relativismo. É uma boa notícia."

Depois perguntaram-me como via hoje o meu posicionamento político. Após longa hesitação, respondi: "Não sei ao certo, talvez um liberal vitoriano." Irving e Bea deram uma gargalhada em uníssono: "Um neoconservador não daria melhor resposta." Daqui nasceu uma longa amizade de que sou profundamente devedor.

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