A questão do governo limitado distingue as revoluções inglesa e americana, por um lado, da Revolução Francesa, por outro. As revoluções inglesa e americana convergiram na importância de limitar o poder dos governos, mesmo quando estes têm origem na vontade popular ou da maioria., João Carlos Espada
Depois de dez ensaios que passaram em revista vários autores cruciais da tradição política de língua inglesa, chegou a altura de iniciar a viagem pelos conceitos que lhes são comuns. Recordamos que o objectivo é encontrar algumas das características definidoras dessa tradição - características que possam ajudar a compreender o "mistério inglês e a corrente de ouro" que foi apresentado no primeiro ensaio (9 de Maio).
GOVERNO LIMITADO Começarei pela questão aparentemente modesta do governo limitado. Na Europa continental é amplamente difundida a crença de que a principal distinção entre democracia e regimes autoritários reside na aceitação ou rejeição do governo do povo ou da maioria, também designado por "soberania popular". O que é curioso é que nenhum dos autores tratados ao longo destes ensaios - e que defenderam a democracia liberal contra várias formas de despotismo - subscreveu o princípio da soberania popular. Na verdade, quase todos o criticaram expressamente. Isso deveria precaver-nos contra a tentação simplista de identificar a democracia liberal com o princípio da soberania popular.
Karl Popper (ensaio de 13 de Junho) condenou severamente as doutrinas vanguardistas de Platão e Marx, segundo as quais o melhor regime seria definido pelo governo de um grupo de especialistas, os filósofos em Platão, os líderes do proletariado em Marx. Mas teve a explícita preocupação de sublinhar que a alternativa não residia simplesmente no governo do povo.
A sua hoje famosa teoria da democracia parte precisamente da asserção de que a pergunta "quem deve governar?" deve ser posta de lado como pergunta crucial para definir o melhor regime político. Essa pergunta, argumentou Popper, deve ser substituída por esta outra: como afastar os maus governos sem derramamento de sangue, sem violência? Ao procurar responder a esta pergunta, Popper mostrou que o governo da maioria não seria, só por si, suficiente. Também o governo da maioria teria de ser limitado por um conjunto de regras que o impedissem de se transformar numa ditadura.
GOVERNO CONSTITUCIONAL Friedrich Hayek (ensaio de 20 de Junho) dedicou grande parte da sua obra a este problema preciso e teve a preocupação de recordar o longo processo de limitação do governo que conduziu gradualmente à emergência das modernas democracias liberais, sobretudo nos países de língua inglesa. Isaiah Berlin (ensaio de 11 de Julho) sublinhou a importância da distinção entre liberdade e soberania e acusou a confusão entre ambas de estar na origem das piores tiranias. Michael Oakeshott (ensaio de 27 de Junho) observou que a limitação do governo pela lei era um dos principais traços distintivos da civilização ocidental. E Leo Strauss (ensaio de 4 de Julho), recordando que Sócrates fora condenado à morte pela democracia ateniense, sublinhou insistentemente que a democracia liberal devia precaver-se contra o governo da multidão ("the rule of the mob").
Por outras palavras, todos os nossos autores convergiram na importância de limitar o poder dos governos, mesmo quando estes têm origem na vontade popular ou da maioria. E todos concordaram que essa limitação passa sobretudo por um sistema constitucional de separação de poderes, freios e contrapesos, direitos e garantias legais: numa palavra, os governos devem ser limitados pela lei, aquilo que na tradição anglo--americana se designa por Rule of Law e na tradição continental por Rechtsstaat ou estado de direito, ou ainda, em ambas, por governo constitucional.
DUAS TRADIÇÕES A diferença entre governo limitado e governo do povo está patente na história do pensamento político desde as suas origens na Grécia ntiga. Aristóteles, que pode ser visto como um antecessor dos autores aqui tratados, defendia um sistema misto e não uma democracia pura. Mas é na emergência das grandes revoluções da época moderna - a de 1688 em Inglaterra, de 1776 na América e a de 1789 em França - que esta distinção se torna crucial.
A questão do governo limitado distingue claramente a orientação das revoluções inglesa e americana, por um lado, da Revolução Francesa, por outro. No plano estritamente teórico, o tema do governo limitado é central em John Locke, David Hume, Edmund Burke e nos "Federalist Papers" que prepararam a Constituição Americana de 1787. Pelo contrário, está absoluta e expressamente ausente do pensamento de Jean-Jacques Rousseau, o autor que mais influenciou a Revolução Francesa, e em particular os jacobinos, e que mais influenciou a sua herança intelectual até à emergência do marxismo (que, como poderíamos argumentar noutra altura, é em quase tudo devedor de Rousseau).
MADISON E ROUSSEAU Num ensaio anterior (30 de Maio), tratei este assunto através de uma comparação crítica entre James Madison e Rousseau. Apenas a título de exemplo, recordo aqui a comparação entre as seguintes passagens de "O Federalista" e "O Contrato Social". Comecemos por recordar Madison:
"Se os homens fossem anjos, os governos não seriam necessários. Se os anjos governassem os homens, não seriam necessários nem controlos externos nem internos sobre os governos. Ao conceber um governo que será administrado por homens sobre homens, a primeira dificuldade reside aqui: primeiro é preciso capacitar o governo a controlar os governados; e a seguir é preciso obrigá-lo a controlar-se a si próprio. Uma dependência do povo é, sem dúvida, o controlo primário sobre o governo; mas a experiência mostrou à humanidade a necessidade de precauções adicionais."
Recordemos agora as palavras de Rousseau:
"Agora, uma vez que o soberano é formado inteiramente pelos indivíduos que o compõem, ele não tem, nem poderia ter, qualquer interesse contrário ao deles; e assim o soberano não tem necessidade de dar garantias aos súbditos, porque é impossível a um corpo desejar produzir danos a todos os seus membros, da mesma forma que, como veremos a seguir, ele não pode produzir danos a qualquer membro particular. O soberano, pelo mero facto de ser, é sempre aquilo que deve ser."
GOVERNO QUE PRESTA CONTAS Rousseau introduziu a ideia da vontade geral sem constrangimentos, e esta foi interpretada de duas maneiras distintas pelos seus seguidores. Numa versão democrata radical, a vontade geral foi interpretada como vontade soberana, ilimitada, da maioria. Numa versão vanguardista, a vontade geral foi interpretada como algo semelhante a uma "essência": não a vontade expressa pelos cidadãos, ainda prisioneiros dos seus interesses particulares, mas uma espécie de "interesse geral" dos cidadãos, que estes seriam incapazes de conhecer, e que deveria ser interpretada pelos seus líderes. Esta segunda interpretação foi claramente a de Karl Marx e seus discípulos.
O que importa aqui sublinhar é que nenhuma das versões atribui ao corpo político a função principal de protecção da liberdade e dos modos de vida existentes. Pelo contrário, quer uma quer outra atribuem à esfera política um poder sem restrições, sem entraves. E esse poder tem um propósito: mudar a sociedade, transformá-la com vista a atingir uma nova sociedade inspirada num modelo particular de perfeição. Com Rousseau, a função de governar passa a ser vista como uma função intrinsecamente transformadora. Nos herdeiros de Rousseau existem vários nomes para essa transformação: modernização, igualdade, neutralidade moral, etc., mas o ponto que nos interessa reter é que governar passa a ser entendido como intervir, mudar, inovar, em vez de basicamente garantir a paz civil e a defesa nacional, administrar a justiça e proteger modos de vida realmente existentes.
DESPOTISMO INOVADOR Como salientei no ensaio sobre Edmund Burke (16 de Maio), ele tinha detectado uma versão (muito mais branda) deste "despotismo inovador" nos governos de corte do rei George III. Burke queria limitar este espírito de inovação ilimitado, que entendia como uma ameaça autoritária aos modos de vida existentes, e as suas instituições intermédias.
"É da natureza do despotismo odiar qualquer forma de poder que não seja o decorrente do seu prazer momentâneo; e aniquilar todas as situações intermédias entre a força sem limites da sua parte e a total debilidade por parte do povo.
Ver-se livre de todas estas instâncias independentes e intermédias e assegurar à corte a utilização ilimitada e sem controlo da sua própria vasta influência, sob a única direcção do seu próprio favor particular, tem sido há alguns anos o grande objectivo político. [?] Trata-se de um esquema de perfeição, a ser realizado numa monarquia muito para além da república visionária de Platão."
Burke era um defensor empenhado do Parlamento e do governo representativo. Neste sentido, podemos dizer que era um democrata de tipo especial. Ao contrário da maioria dos intérpretes continentais da democracia, sob a influência de Rousseau, Burke não entendeu o governo popular ou representativo como uma fonte de governo ilimitado. Para Burke, o governo representativo é sobretudo um limite à vontade política sem entraves, um representante de modos de vida realmente existentes e uma garantia da sua protecção contra "esquemas de perfeição" concebidos a partir de um centro único de poder. Para Rousseau e seus seguidores, o governo da vontade geral é visto como uma assembleia em permanente acção política transformadora.
DIFUSÃO DO PODER Isto conduz-nos a uma outra característica crucial da tradição política anglo-americana: o conceito de liberdade como difusão do poder. Trataremos este tema no próximo sábado.
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