Como explicar o triunfo intelectual do relativismo no século XX? Quem ou o quê destruiu os limites morais, absolutos e interpessoais, ao exercício da vontade sem entraves?, João Carlos Espada
o sábado passado discutimos os fundamentos morais da democracia liberal. Observámos que os totalitarismos do século 20, da esquerda e da direita, se caracterizaram pela revolta contra todos os limites morais, absolutos e interpessoais, ao exercício da vontade revolucionária.
Por outras palavras, o colapso da liberdade ficou a dever-se principalmente ao colapso dos padrões morais interpessoais. Por outras palavras ainda, o colapso da liberdade ficou a dever-se ao triunfo intelectual e moral do relativismo.
PERGUNTA CRUCIAL A pergunta que decorre daqui é incontornável: como explicar o triunfo intelectual do relativismo no século XX? Quem ou o quê destruiu os limites morais, absolutos e interpessoais, ao exercício da vontade sem entraves?
Os autores que discutimos ao longo destes ensaios sugerem uma resposta inesperada a esta pergunta crucial: eles sugerem que foi o racionalismo dogmático que gerou o relativismo. Mas não contrapõem ao racionalismo dogmático qualquer forma de irracionalismo. Eles sustentam um outro tipo de racionalismo, a que podemos chamar crítico, ou falibilista. Esta é uma longa história de que aqui podemos dar apenas um breve apanhado.
RACIONALISMO DOGMÁTICO Karl Popper atribuiu importância decisiva à distinção entre racionalismo crítico e racionalismo dogmático, "compreensivo" (no sentido de abrangente), ou total. Apresentando-se como um racionalista de tipo especial, ou seja, como um racionalista crítico, Popper condenou a presunção do racionalismo dogmático:
"Podemos descrever o racionalismo acrítico ou dogmático como a atitude da pessoa que diz: ?Não estou disposto a aceitar nada que não possa ser defendido com base em argumentos ou na experiência?. Podemos expressar esta ideia também sob a forma do princípio de que qualquer pressuposto que não seja confirmado por argumentos ou pela experiência deve ser rejeitado. Ora, é fácil ver que este princípio do racionalismo acrítico carece de coerência, pois, como não pode, por seu turno, ser confirmado por argumentos ou pela experiência, implica que ele próprio deve ser rejeitado. (Assemelha-se ao paradoxo do mentiroso, ou seja, a uma frase que afirma a sua própria falsidade.) O racionalismo acrítico é, portanto, insustentável em termos lógicos; e uma vez que é possível provar isto com argumentos puramente lógicos, é possível demonstrar a invalidade do racionalismo acrítico recorrendo à sua principal arma, os argumentos."
PRESSUPOSTO COLOSSAL E Popper acrescentou: "Podemos generalizar esta crítica. Como todos os argumentos devem proceder de pressupostos, é evidentemente impossível exigir que todos os pressupostos se baseiem em argumentos. A exigência de muitos filósofos de que não partamos de qualquer pressuposto e nunca pressuponhamos nada acerca da ?razão suficiente?, e mesmo a exigência menos insistente de que partamos de um conjunto muito pequeno de pressupostos (?categorias?), são ambas inconsistentes nesta formulação. Porque essas mesmas exigências assentam no pressuposto verdadeiramente colossal de que é possível começar sem pressupostos, ou apenas com alguns pressupostos, e mesmo assim obter resultados válidos."
BUSCA DA CERTEZA Também Michael Oakeshott viu no racionalismo dogmático a origem do relativismo. Chamou-lhe a política de fé, por oposição à política de cepticismo, sendo a primeira denominada também política racionalista, ou política da perfeição. Atribuiu a Descartes e Bacon a origem do racionalismo dogmático: "O objectivo de Descartes, tal como o de Bacon, é a certeza. O conhecimento seguro só pode surgir numa mente esvaziada: a técnica da investigação começa com uma depuração intelectual. O primeiro princípio de Descartes é ?de ne recevoir jamais aucune chose pour vraie que je ne la connusse évidemment être telle, c?est à dire d?eviter soigneusement la précipitation et la prévention?, de bâtir dans un fonds qui est tout à moi?, e diz que o investigador é ?comme un homme qui marche seul et dans les ténèbres? » (em francês, no original inglês de Oakeshott).
FALSA ABERTURA Oakeshott mostra como por detrás da aparente "abertura de espírito" do racionalista (o racionalista acrítico e total, como teria dito Karl Popper) se encontra a sua busca obsessiva da certeza e a sua muito dogmática (e muito pouco "aberta") incapacidade de viver com a incerteza, ou com o conhecimento falível e experimental inerente às tradições descentralizadas, ao hábito ou ao simples common sense: "O cerne da questão é a preocupação do Racionalista com a certeza. Para ele, técnica e certeza são indissociáveis porque o conhecimento exacto é, para ele, conhecimento que não precisa de ir além de si mesmo para se saber certo? Por exemplo, a superioridade de uma ideologia em relação a uma tradição de pensamento deve-se à sua aparente autonomia. É mais fácil ensiná-la a uma mente vazia; e se for ensinada a alguém que já acredita em qualquer coisa, a primeira coisa que o professor deverá fazer é administrar um purgante, certificar-se de que todos os preconceitos e ideias preconcebidas foram eliminados, construir os seus alicerces sobre a rocha inabalável da ignorância absoluta."
COMEÇAR DO NADA "Construir os seus alicerces sobre a rocha inabalável da ignorância absoluta", diz Oakeshott acerca da atitude do racionalista. Ora é exactamente desta forma que Karl Popper descreveu a atitude de um racionalista dogmático: "Não estou interessado na tradição. Quero julgar tudo pelos seus próprios méritos; quero conhecer os seus méritos e deméritos, e quero fazê-lo o mais independentemente possível de qualquer tradição. Quero julgar com o meu próprio entendimento e não com o entendimento de outros que viveram há muito tempo."
Karl Popper argumentou que é impossível substituir todo o conhecimento herdado por novo conhecimento alegadamente fundado "dans un fond qui est tout à moi", para usar a expressão de Descartes. Isso significaria substituir em uma ou duas gerações tudo aquilo que amadureceu gradualmente ao longo das gerações. Recordemos mais uma vez o que disse Popper a este respeito:
"É uma questão muito simples e decisiva, que no entanto poucas vezes é suficientemente entendida pelos racionalistas - que não podemos começar do nada; que precisamos de usar os conhecimentos científicos daqueles que vieram antes de nós. Se começássemos do nada, quando morrêssemos nem teríamos chegado aonde chegaram Adão e Eva (ou, se preferirem tão longe como o homem de Neanderthal). Na ciência queremos progredir, e isto significa que temos de nos manter nos ombros dos nossos predecessores."
CHEGAR AO NADA Tal como na ciência, também no âmbito dos padrões morais e de comportamento não é possível começar do nada. A busca da certeza sem pressupostos - a ambição de começar do nada -- também aqui conduzirá a que cheguemos ao nada. Isto significa que nenhum padrão - nem mesmo as sagradas palavras da Declaração de Independência americana, "os homens nascem iguais", muito menos o código inglês da gentlemanship - nada no fim será poupado à busca da certeza sem pressupostos por parte do racionalismo dogmático.
Então, enquanto a purga intelectual prossegue, à medida que todos os preconceitos e ideias preconcebidas são eliminados, o racionalismo dogmático aproximar-se-á triunfantemente do seu grande objectivo: estabelecer as suas fundações sobre a rocha cartesiana da ausência de pressupostos, ou, como escreveu Oakeshott, sobre a rocha inabalável da ignorância absoluta.
RELATIVISMO DOGMÁTICO Mas a ignorância absoluta é o reino do relativismo absoluto. É o reino do nada, do "sem significado", ou do "por que não?" e do "seja o que for".
Por outras palavras, a busca da certeza - que conduziu o racionalista dogmático à destruição de todos os pressupostos que ele não conseguia demonstrar - condu-lo, por fim, a uma certeza absoluta: que nada pode ser estabelecido acerca da moral ou dos costumes, para não mencionar o dever ou a honra e, hoje em dia, até acerca do conhecimento científico.
No final, até a liberdade e a democracia liberal se tornam apenas mais outra "narrativa". Se tudo é resultado da vontade arbitrária, por que é que a democracia liberal deve ser entendida como melhor do que as suas inimigas?
VONTADE SEM ENTRAVES Eis como chegámos à destruição de todos os limites morais, absolutos e interpessoais, ao exercício da vontade revolucionárias sem entraves. Discutiremos no próximo sábado se e como é possível voltar a aceitar limites morais.
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