João Carlos Espada
Discutimos nos dois últimos ensaios os contornos políticos da democracia. Vimos que assentam no governo representativo limitado pela lei e que se distinguem de dois tipos de regimes rivais. Por um lado, as democracias distinguem-se de todo e qualquer regime vanguardista (de esquerda ou de direita) em que os governantes não prestam contas aos cidadãos. Por outro lado, distinguem-se dos regimes (mais uma vez, de esquerda ou de direita) que se reclamem da chamada soberania popular.
Cabe-nos agora discutir se existe ou não um fundamento moral para as democracias liberais, tais como as descrevemos aqui com base nas obras dos autores que examinámos.
RELATIVISMO DEMOCRÁTICO? Muitos comentadores têm tendência a identificar a humildade e o cepticismo intelectuais dos autores tratados ao longo destes ensaios com uma espécie de relativismo moral. Segundo esse ponto de vista, a democracia liberal distinguir-se-ia dos totalitarismos do século 20 precisamente por não abraçar qualquer moral particular enquanto "verdadeira". Os totalitarismos, pelo contrário, reclamariam para a sua "moral" o estatuto de única verdadeira - e por isso perseguiam os que não concordavam com ela.
Existe, à primeira vista, alguma plausibilidade neste argumento. No entanto, ele dificilmente resiste a uma reflexão mais prolongada. O que caracterizou os totalitarismos do século 20, quer no plano intelectual quer no plano da acção política, foi precisamente a revolta contra todos os limites morais absolutos e interpessoais ao exercício da vontade revolucionária. Por outras palavras, o colapso da liberdade deveu-se principalmente ao colapso dos padrões morais interpessoais. E os autores que estudámos tiveram clara consciência disso mesmo, embora muitos comentadores tendam a não se aperceber desse aspecto crucial.
ABSOLUTO MORAL Isaiah Berlin, por exemplo, é muitas vezes apresentado como o símbolo da recusa de quaisquer princípios morais absolutos e da defesa de um total pluralismo de valores, que seriam absolutamente incomensuráveis entre si. No entanto, no seu mais célebre ensaio, "Dois conceitos de liberdade", Berlin faz expressa e repetida referência à necessidade de um absoluto moral como trincheira contra a tirania:
"Se eu quiser preservar a minha liberdade [?] Tenho de criar uma sociedade em que existam certas fronteiras de liberdade que ninguém seja autorizado a transpor. Podem ser atribuídos diferentes nomes ou naturezas às regras que determinam essas fronteiras: direitos naturais, a palavra de Deus, lei natural ou as exigências da utilidade ou dos "interesses permanentes do homem"; posso acreditar que são válidas a priori ou reivindicá-las como os meus propósitos essenciais, ou da minha sociedade, ou cultura. (?) A crença genuína na inviolabilidade de uma área mínima de liberdade individual implica uma posição absoluta."
BARREIRAS ABSOLUTAS E Isaiah Berlin acrescenta:
"Para Constant, Mill e Tocqueville e para a tradição moral em que se inserem, nenhuma sociedade é livre a menos que seja regida por dois princípios interligados: primeiro que só os direitos, e não o poder, podem ser considerados absolutos, pelo que todos os homens, qualquer que seja o poder que os governa, têm o direito absoluto de se recusarem a comportar desumanamente; e, segundo, que existem fronteiras, não artificialmente traçadas, dentro das quais os homens devem ser invioláveis."
Por fim escreveu:
"E são regras como estas que são violadas sempre que uma pessoa é declarada culpada sem julgamento, ou punida com uma lei retroactiva; sempre que os filhos são forçados a denunciar os pais, os amigos a traírem os amigos, os soldados a usarem métodos bárbaros; sempre que os homens são torturados ou assassinados, ou minorias massacradas porque provocam a irritação de uma maioria ou de um tirano. Tais actos, ainda que legalizados pelo soberano, causam horror mesmo nos dias de hoje, e isso resulta do reconhecimento da validade moral - independentemente das leis - de algumas barreiras absolutas - à imposição da vontade de um homem a um outro."
VONTADE SEM ENTRAVE Isaiah Berlin captou de forma extraordinariamente certeira um dos segredos do totalitarismo do século XX: a sua revolta contra o "reconhecimento da validade moral - independentemente das leis - de algumas barreiras absolutas à imposição da vontade de um homem a um outro". A isto temos chamado ditadura da vontade sem entrave. Observámos que essa ditadura foi possível, em primeiro lugar, porque a ideia de governo limitado fora abandonada. Verificamos agora que Isaiah Berlin afirma que a possibilidade de um governo ilimitado ou sem entraves resulta do abandono do reconhecimento da validade moral de algumas barreiras absolutas.
Não deixa de ser curioso notar que Hayek afirmou precisamente o mesmo:
"Um sistema desse tipo (de liberdade) terá possibilidades de ser alcançado e mantido apenas se toda a autoridade, incluindo a da maioria, for limitada no exercício do poder coercivo por princípios gerais com os quais a comunidade se tenha identificado. A liberdade individual, onde quer que tenha existido, tem sido sempre produto de um respeito dominante por esses princípios, os quais, no entanto, nunca foram completamente articulados em documentos constitucionais."
POSITIVISMO E ARBITRARIEDADE Mais adiante, Hayek considera que foi o alastramento do positivismo que conduziu ao abandono do respeito por esses princípios:
"É apenas demasiado verdade, como reconheceram não apenas opositores do positivismo como Emil Brunner, mas no fim até positivistas de toda a vida como Gustav Radbruch, que foi a prevalência do positivismo que tornou indefesos os guardiões da lei contra os novos avanços do governo arbitrário".
Finalmente, Hayek reforça a sua crítica ao positivismo citando Emil Brunner:
"O Estado totalitário é simplesmente e somente o positivismo legal em prática política".
POSITIVISMO E MARXISMO É importante notar que também Karl Popper acusou o positivismo de estar associado ao crescimento do totalitarismo e ao abatimento das fronteiras morais que limitavam o exercício do poder arbitrário. No seu famoso "esforço de guerra", "A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos", Popper caracterizou o positivismo ético como a atitude que "partilha com o naturalismo ético a crença em que devemos tentar reduzir normas a factos. Mas os factos são desta vez factos sociológicos, designadamente, as normas realmente existentes. O positivismo mantém que não há outras normas que não sejam as leis que foram feitas e que por isso têm existência positiva. Outros padrões são considerados produtos irreais da imaginação. As leis realmente existentes são consideradas como os únicos possíveis padrões de bem: o que é, é bom. (a força é o direito)."
Karl Popper considerou que esta forma de positivismo ético (denunciada por ele em Hegel) foi levada ao extremo pelo historicismo marxista:
"Em capítulos anteriores, fiz referência ao positivismo moral (especialmente o de Hegel), a teoria de que não há qualquer outro padrão moral a não ser aquele que existe; aquilo que é, é razoável e bom; portanto, a força é o direito. O aspecto prático desta teoria é este: uma crítica moral de um estado de coisas actual torna-se impossível, uma vez que é esse próprio estado de coisas que determina o padrão moral das coisas. Ora a teoria moral historicista que estamos a considerar (de Marx) nada mais é do que uma outra forma de positivismo moral."
PENSAMENTO ALEMÃO Isto significa que, para Popper, o historicismo é apenas uma forma do positivismo moral que ele e Hayek consideraram responsável pelo abandono dos princípios morais. E foi este abandono dos princípios morais que ambos, juntamente com Isaiah Berlin, apontaram como geradores do poder arbitrário sem limites. Ora foi precisamente este fenómeno que também Leo Strauss apontou, em 1950, como gerador do totalitarismo moderno:
"Ao abandonar a ideia de direito natural, o pensamento alemão criou o "sentido histórico" e assim foi conduzido no final ao relativismo total. O que era uma descrição toleravelmente exacta do pensamento alemão há vinte e sete anos parece agora aplicar-se ao pensamento ocidental no seu conjunto. Não seria a primeira vez que uma nação, derrotada no campo de batalha e, por assim dizer, aniquilada como entidade política, privou os seus conquistadores do mais sublime fruto da vitória por meio da imposição sobre eles do jugo do seu próprio pensamento."
CRISE DA MODERNIDADE Para Strauss, o relativismo estivera na base do fenómeno totalitário que fora derrubado pelas democracias ocidentais. Mas, no plano puramente intelectual, o relativismo sobrevivera à derrota do totalitarismo e dominava a atmosfera intelectual e moral das democracias. O triunfo do relativismo era, para Strauss, a origem daquilo que designou por crise da cultura ocidental moderna:
"A crise da modernidade revela-se no facto, ou consiste no facto, de que o homem ocidental moderno já não sabe aquilo que quer - já não acredita que pode saber o que é bom e mau, o que é certo e errado. Até algumas gerações atrás, era geralmente aceite que o homem pode saber o que é certo e errado, qual é a ordem de sociedade justa, ou boa ou melhor - numa palavra, que a filosofia política é possível e necessária. No nosso tempo, essa fé perdeu o seu poder."
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