A propósito da visita do eminente teólogo cardeal Ratzinger, o poeta e padre Tolentino Medonça, publicou no i a 12 de Maio de 2010 este texto que me foi sugerido pelo meu amigo Rui Caetano que vale a pena ler. Em nome da estética, cujo novo nome no presente é ética: "a estética é a ética do Futuro", disse Gorki
Bento XVI considerou Lisboa "cidade amiga"
Há imagens que valem por mil palavras: são aquelas raras, capazes de expressar, ao mesmo tempo, a realidade na sua imediatez flagrante e o que precisamente nela escapa ao imediato, apontando camadas profundas de significação. Robert Doisneau explica isso bem, falando da sua arte: «A fotografia é para mim o instante de felicidade em que aquilo que nos entra pelos olhos nos dilata». Doisneau valorizava os momentos culminantes, as situações que, de repente, fixam diante de nós a gravidade e a leveza; não só o repetido, mas também o único; não só o próximo e audível, mas também o silencioso e invisível. Tais momentos descobrem a vida numa singularíssima intensidade.
O encontro de Bento XVI com os artistas
No encontro de Bento XVI com os Artistas, em Novembro passado, houve para mim duas imagens assim. A primeira delas aconteceu quando a numerosa comitiva de Criadores convidados, uma vez passado o Portão de Bronze, se estendeu pelo vasto corredor, chamado Braço de Constantino, em direcção à escadaria Régia e à Capela Sistina. Não sei bem em que altura, nem por que motivo me voltei para trás. O que eu sei é que tive o desejo de conservar o que vi então para sempre. Centenas de artistas vindos do mundo inteiro, muitos deles protagonistas de primeiro plano no campo da literatura, da música ou das artes visuais, caminhavam como uma multidão compacta, num clima inteiramente cordial, dentro de um trilho emblemático da Igreja, para um encontro solicitado pelo Santo Padre. Há imagens que valem por mil palavras. No encontro, e a propósito dele, falar-se-ia muito da reconciliação da Igreja com a Arte Contemporânea e da necessidade de renovar o pacto que tão intimamente liga a procura espiritual e a procura da beleza, no interior do espaço católico. Aquela imagem, para mim, representava isso: a reconciliação que começa a efectivar- -se sob a forma de presença, o pacto que se modela na abertura de parte a parte ao diálogo, ao acolhimento, ao caminho comum.
A outra imagem irrompe do modo como Bento XVI se despediu dos Artistas, no final do seu inesquecível discurso. Ao longo deste, o Santo Padre citou vários passos importantes dos magistérios anteriores; referiu directamente Platão e Dostoievski, Georges Braque e Cyprian Norwid, Simone Weil, Hermann Hesse e Hans Urs von Balthasar; aludiu a grandes vultos da tradição iconográfica, como o Beato Angélico, Perugino, Botticelli, Ghirlandaio, Cosimo Rosselli, Luca Signorelli e, claro, Michelangelo Buonarroti. Ao escutar ou ao ler aquele discurso, percebemos que estamos perante uma impressionante lição de sabedoria, tanto ao nível da cultura, como no plano teológico e espiritual. Contudo, o remate é desconcertante, pois é feito com estas palavras: «Ao abençoar- -vos de coração, saúdo-vos, como já fez Paulo VI, com uma só expressão: até breve!». Este «até breve» representa uma intromissão da linguagem do quotidiano numa ocasião de solenidade máxima. Num contexto claramente extraordinário conclui-se adoptando uma marca verbal da experiência ordinária. Digo que me comoveu imensamente esta transição, mais do que verbal, simbólica. A Igreja aparece empenhada em construir uma convivência afectuosa e continuada, não apenas uma ocasião pontual.
Regressar à beleza
Na arquitectura do discurso que o Papa pronunciou, cabia a esta pergunta o papel central: «O que é que pode voltar a dar entusiasmo e confiança, o que é que pode encorajar o ânimo humano a reencontrar o seu caminho, a erguer o olhar além do horizonte imediato, a sonhar uma vida digna da sua vocação se não a Beleza?».
De facto, os outros dois transcendentais, Verdade e Bondade, não têm possibilidade de atrair o homem, a não ser que este se sinta tocado «por algo que fascina», como escrevia Plotino. A Beleza é que atrai, faz deslocar o coração, toma e transfigura. Temos, por isso, de ultrapassar o silêncio a que uma certa estação racionalista, mesmo dentro da teologia e da praxis cristã, a votava.
A Platão devemos o sintagma tantas vezes reproposto, «a beleza é o esplendor da verdade». O autor do Fedro aconselha a que nos tornemos, pelo caminho da contemplação, semelhantes à própria beleza: «Enquanto vê, como no tremor da febre, produz-se nele uma agitação, um suor, um calor insólito. É que recebe o fluxo da beleza pelos olhos. Este fluxo aquece-o e rega a essência...». Simone Weil, no seu agudíssimo ensaio intitulado "Deus em Platão", sintetiza: «A ideia de Platão é que a beleza age duplamente, primeiro através de um choque que provoca a recordação do outro mundo, e de seguida como fonte material de uma energia directamente utilizável para o progresso espiritual». Na verdade, já na antiguidade clássica, o estatuto da beleza se desloca do puro plano estético, visual, imanente (isso que em grego se diz fantasia). Sentia-se a necessidade de aproximação a uma poética da presença, que é mysterium tremendum. A beleza é uma experiência que os sentidos não circunscrevem completamente, mesmo quando palpam, pois ela permanece inexprimível.
Uma beleza que se contempla pelas costas
No relato bíblico, Moisés aparece-nos como o amigo de Deus, aquele com quem Deus fala «face a face, como um homem fala com o outro» (Ex 33,11). Mas quando pede a Deus para que se mostre, Deus faz passar diante dele «a (Sua) beleza», deixando-se apenas ver «pelas costas» (Ex 33, 18-23). A beleza de Deus é, assim, irrepresentável, transcendente, envolta em mistério. Os deuses dos povos vizinhos, esses têm uma substância que se define, um corpo, uma imagem, um nome que se recita. O Deus da Bíblia deixa em silêncio as possibilidades de representação, é transumante e impronunciável. A sua beleza é somente entrevista.
As teofanias bíblicas são acontecimentos desarmantes, porque Deus foge do declarado e do nítido e apresenta-se no imperceptível, naquilo que é apenas sussurrado, «o murmúrio de uma brisa suave» (1Re 19,12). O Código da Aliança é peremptório: nenhum corpo servirá à representação de Deus, seja «figura de homem ou de mulher, figura de algum animal terrestre, de algum pássaro que voa no céu, de algum réptil que rasteja sobre o solo, ou figura de algum peixe que há nas águas que estão sob a terra» (Dt 4,16-18). O Deus Santo é, literalmente, o Deus separado das imagens, o Deus todo outro face ao desenho das representações. Mas o Seu mistério esplende, revela-se, e isso é a Beleza.
1. Esplende enquanto palavra: «Ouvistes o rumor, mas nenhuma figura divisastes: nada, além de uma voz» (Dt 4,12). Palavra que não é apenas signo. A sua natureza é performativa: abarca tanto a potência como o acontecimento; tanto o significante como o significado; tanto o anúncio como o acto. E é uma Palavra bela. Por isso se diz: «O povo bíblico não tem arte, mas cria arte na palavra». Todas as imagens, as cores, as cenas principais e secundárias do texto bíblico tornaram-se, ao longo da história da arte, uma espécie de alfabeto. É evidente que a beleza da palavra bíblica mais do que um exercício de estilo, é uma consequência da sua tensão revelatória.
2. Esplende enquanto presença irresistível. Em momentos determinantes da experiência religiosa, o sussurro é o de uma beleza divina que se atravessa, obscura e fulgurante, uma beleza que se prende ao nosso corpo, num combate nocturno, até ao romper da aurora. A misteriosa luta de Jacob com Deus (Gn 32,23-33) transcreve paradigmaticamente como a irrupção do divino é tão forte, de uma beleza irresistível, sem deixar nunca de ser obscura e enigmática.
Uma nova beleza apareceu
«Depois de ter morrido no Oriente um Homem que o Ocidente chora todas as sextas-feiras, juntamente com a nova verdade, uma nova beleza apareceu. Grande milagre esse, que veio renovar a fonte da arte e permitir que a nova arte rivalize com a antiga» - escrevia Leonardo da Vinci, no Tratado de Pintura. No seu desenvolvimento histórico, a experiência cristã tornou-se húmus para algumas assombrosas expressões da beleza: a arquitectura religiosa, de Michelangelo a Gaudí; as impressões incandescentes transcritas pelos místicos (pensemos em Hildegarda de Bingen ou em São João da Cruz); os registos iconográficos que repetem traço a traço o incomensurável (as multidões diárias são a prova de que a Sistina arrepia todo o mortal); as peças musicais que ressoam como inventários da alma ou como seu relâmpago; os dicionários imensos do natural e do sobrenatural; os símbolos, o laboratório de linguagens que infinitamente se desdobram. Mas todas estas expressões podem tornar-se simplesmente equívocas, pois a beleza não é um património que a Igreja teve ou tem ou administra. A beleza liga-se à revelação da própria Igreja, à sua identidade sobrenatural. Este é o «grande mistério» referido na passagem da Carta aos Efésios (5,25-26): «Cristo amou a Igreja e se entregou por ela...Ele quis apresentá-la esplêndida, sem mancha nem ruga, nem coisa alguma semelhante». A Igreja em Cristo, no mistério da sua natureza e da sua missão, é a aurora da visão, é esse arrebatamento, histórico e infinito, ao ponto de vista de Deus. Em modo velado, mas tremendamente eficaz, ela constitui expressão e drama da sabedoria divina. «O sublime Paulo - escreve Dionísio, o Areopagita - caído sob o aguilhão do eros divino e tornado partícipe do seu poder extático, clama com voz inspirada: "Vivo, mas já não sou eu que vivo. É Cristo quem vive em mim". Ele fala, pois, como um verdadeiro amante, como alguém que, como o mesmo diz, está fora de si e vive extaticamente em Deus (2Cor 5,15), de tal maneira que já não vive a sua própria vida, mas a do amado, como alguém que está cheio de amor apaixonado. Contudo, para honrar a verdade, temos de atrever--nos também a dizer que o próprio Deus, o criador de tudo, pela desmesura da sua amorosa bondade e beleza, como que é arrebatado de si mesmo em providências que alcançam todos os seres». A experiência da beleza testemunha como Cristo e o cristão, Deus e o Homem são arrebatados in invisibilium amorem. Este duplo e recíproco êxtase - de Deus no homem e do homem em Deus - é o conteúdo da visão da beleza.
Por isso, a beleza não é um atributo, um campo à parte, uma moeda de troca, um consolo, uma técnica, um código simbólico, um artifício, uma especialidade, um suplemento, como se o Ser e a Beleza se pudessem, de alguma maneira, separar. A beleza é uma metafísica concreta, uma teologia visual, um ponto de união entre o mundo invisível e o mundo visível. O chamado regresso à Via Pulchritudinis não se pode confundir com as derivas decorativas que fazem o gáudio de alguma sensibilidade hodierna. A forma não seria bela se não fosse, fundamentalmente, anúncio e manifestação de uma experiência autêntica. Como lembrava o Santo Padre aos Artistas, o regresso à Beleza será sim a descoberta de um caminho que «conduz-nos a colher o Todo no fragmento, o Infinito no finito, Deus na história da humanidade».
Uma beleza sub contrario
«A beleza salvará o mundo», afirma o príncipe Miskin em " O Idiota", de Dostoievski. Mas a revelação da beleza que nos salva descobre- -se ao inverso. Na verdade, o belo é um argumento sub contrario, pois o belo pastor «é como raiz que brota de uma terra seca; sem beleza nem esplendor que pudesse atrair o nosso olhar, nem a formosura que nos deleita»(Is 53,2). Não há beleza que não seja costurada pelo escandaloso mistério da cruz. Se acreditarmos no aforisma que coloca a beleza como o esplendor da verdade, então temos de aceitar que a beleza mais elevada é, afinal, uma beleza «sem beleza», a beleza da vítima, a beleza do justo.
Na aguda reflexão sobre a cultura contemporânea, George Steiner recorda que um grande sintoma de que a beleza perdeu o seu sopro vital é o facto de os homens que criaram e mantiveram Auschwitz serem, afinal, requintados melómanos, reunirem colecções fabulosas de pintura, se comoverem à leitura de um poema. A beleza sem transcendência é mercadoria, mero artefacto de consumo. Por isso também, um dos textos mais belos do séc. XX é o Diário de Etty Hillesum, começado a escrever em 1941, quando tinha apenas 27 anos e a três da sua morte nas câmaras de gás, em Auschwitz. Recorde-se o que ela escreveu numa madrugada de sábado: «...da minha cama olhava para fora, pela grande janela aberta. E era como se a vida com todos os seus segredos estivesse de novo junto a mim, a ponto de a poder tocar. Tinha a sensação de repousar sobre o seu peito nu, de sentir o bater regular e ligeiro do seu coração. Estava entre os braços vazios da vida e sentia-me tão segura e protegida. Pensava: como tudo é estranho. Existe a guerra. Existem campos de concentração. Pequenas barbáries acumulam-se de dia para dia...Conheço a grande dor humana...sei que todas estas coisas existem, e ainda assim insisto em olhar nos olhos cada fragmento de realidade inimiga. E num momento de abandono, encontro-me sobre o peito nu da vida e os seus braços vazios envolvem-me, tão doces e protectores, e o bater do seu coração que não sei sequer descrever».
Bento XVI na pátria de Fernando Pessoa
Na sua vinda próxima a Portugal, Bento XVI tem um encontro marcado com representantes dessa realidade coral que é sempre uma cultura. Ora, uma das ambições comuns do turista que visita Lisboa é fazer-se fotografar ao lado da estátua de Fernando Pessoa (1888-1935), diante do emblemático café "A Brasileira", onde gerações de artistas se reuniram. Não há guia turístico que não recomende uma atenção privilegiada à obra poética de Pessoa. E existem abundantes razões, não só literárias, para isso. Dir-se-ia mesmo que as principais, aquelas que tornaram o poeta um ícone europeu contemporâneo, são razões de civilização.
Pessoa é um surpreendente caso, se pensarmos que a revelação da sua obra dá- -se praticamente numa estação póstuma: em vida publicou apenas um livro e esparsa colaboração em revistas. Ninguém podia então adivinhar que a famosa arca dos seus manuscritos escondia um dos mais apaixonantes escritores do século XX. A derradeira frase que pronunciou no leito de morte, «I know not what tomorrow will bring» («Não sei o que o futuro trará»), foi ganhando também, a este nível, uma intensa coloração autobiográfica. Quem o visse naqueles anos, disfarçado de anónimo empregado de escritório, traduzindo correspondência comercial em pequenas firmas de exportação, estaria longe de supor que se cruzava com um Criador da dimensão de Kafka, de Joyce ou de Musil.
A poesia como diagnóstico espiritual
A poesia de Pessoa é um diagnóstico espiritual impressionantemente certeiro da Modernidade. A essência da cultura moderna não determinou, ao contrário do que se diz, a ausência do sentimento religioso ou da metafísica, da ética ou da estética. O que define a Modernidade mais do que o vazio é o excesso. As antigas esferas subsistem, aquilo que funda a certeza ou a crença permanece. Mas sob um regime novo: o de uma radical autonomização que confere à cultura e ao homem um perfil estilhaçado. A partir de agora somos fragmentos de uma unidade perdida, dispersão incontrolável, orfandade e ficção. Como o poeta enuncia numa passagem de um dos seus poemas mais conhecidos, "Tabacaria":
«Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido...»
Pessoa levará ao assombro o processo da heteronímia, que representa fundamentalmente esta dissociação interior. Ele não usa pseudónimos, mas heterónimos: com meticulosidade desarmante, planeia a existência de poetas autónomos, diferentes na sua índole e na sua escrita, contrastantes e perfeitos nos tiques, nos gostos, no humor. É verdade que já Rimbaud havia dito, na famosa carta dita "du Voyant", endereçada em 1871: «Je est un autre». E Pirandello escrevia contemporaneamente o seu «Uno, nessuno e centomila». Mas Pessoa tornar-se-á um dos videntes da Modernidade e também um dos seus sintomas, na radicalização daquela fractura interior até à completa pulverização. Nesse sentido, a heteronímia traduz não apenas uma estratégia de composição literária, mas também um movimento espiritual: precisamente o do homem que se descobre refém da impotência extrema de se conceber já e exprimir como unidade. Numa paráfrase do Salmo 22, que Jesus reza na Cruz, o poeta escreverá também como sua Paixão: «Meu Deus, meu Deus, a quem assisto? Quantos sou? Quem é eu? O que é este intervalo que há entre mim e mim?». E a Paixão de Fernando Pessoa é hoje, realmente, Paixão de tantos! Fome de sentido e de beleza!
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