sábado, 23 de fevereiro de 2008

DISCURSO DE JOÃO CARLOS GOUVEIA NA ALR




Excelentíssimo Senhor Presidente
da Assembleia Legislativa da Madeira,
Senhoras e Senhores Deputados,


Os madeirenses não são um povo superior, nem, muito menos, medíocres, como alguém, com superiores responsabilidades na Região, quis fazer crer numa entrevista televisiva.

Os madeirenses são portugueses que vivem em duas ilhas, no meio do Oceano Atlântico, entre a terra exígua e a imensidade do mar, em relação aos quais, por tais circunstâncias adversas, podemos referir uma singularidade extrema, enquanto identidade sociológica.

Nas palavras de Miguel Torga, os madeirenses são ímpares. Segundo ele, há uma forma telúrica de os madeirenses viverem as suas próprias vidas, confrontados que estão permanentemente com o abismo que se faz entre as serras e o mar.

Se somos, desde sempre, marcados indelevelmente pelo oceano, é da terra abrupta que a seiva madrasta escorre, durante séculos e séculos da nossa existência, num acto simultâneo de desbravamento da ilha e da sementeira da injustiça.

E se temos uma paisagem natural belíssima, há uma outra, que foi crescendo com os homens, terrivelmente negra, sob a roda do tempo da História, expressa na fome, na pobreza, na ignorância e na servidão. Arroteámos a terra, é verdade, para sobrevivermos, mas arroteámos também a terra para robustecermos o chicote dos poderosos.

Esta é a nossa herança, a canga do nosso calvário para sermos homens e mulheres de corpo inteiro perante o abismo, não daquele que fala Miguel Torga, mas o abismo do “apartheid” social, que ganhou raízes desde os primórdios do povoamento.

Por mais que as nossas elites do passado longínquo estivessem abertas à inovação tecnológica, ao comércio internacional e à intercomunicação cultural com os outros povos, o peso anacrónico da organização social e económica vinculada aos princípios feudais conduziu-mos à submissão, à miséria e ao subdesenvolvimento.

Sempre uns poucos madeirenses escravizaram muitos madeirenses; sempre as instituições políticas locais estiveram ao serviço das minorias privilegiadas e cruéis; sempre uns poucos espoliaram e enganaram a grande maioria dos madeirenses; sempre os grupos económico-sociais exteriores, particularmente estrangeiros, dominaram as actividades mais rentáveis das duas ilhas.

Esta é a nossa História. Uma História que versa sobre a riqueza de uns quantos, gerada pelo suor de muitos; uma História que versa sobre a servidão de quase todos, perante os caprichos inconfessáveis dos senhores de ocasião.

Fizeram a diferença aqueles que sempre fugiram às amarras dos pequenos déspotas e que, no regresso, impuseram a sua condição de homens livres, perante os que sempre os espezinharam e os dominaram pela rédea curta da ignorância.

Sempre houve madeirenses que enganaram outros madeirenses; madeirenses que roubaram o pão a outros madeirenses. E sempre os que mais exploraram foram os que mais semearam a mentira e a ignorância. Só pela mentira e pela ignorância é que os parcos recursos de muitos poderiam ser distribuídos por tão poucos.

A nossa expressão popular “abrir os olhos” tem laivos de uma heroicidade rasteira, na complexidade da interacção social. Tanto assim que, para os poderosos das duas ilhas, mentir aos madeirenses sempre foi uma estratégia de poder.

Sempre foi assim na Madeira Feudal, na Madeira Mercantil, na Madeira Velha e na actual Madeira Nova: mentir, mentir, para melhor poder enganar; mentir, mentir, para melhor poder sugar os recursos de todos aqueles que vivem em duas ilhas, entre a terra exígua e a imensidade do mar, configurando-lhes, claro está, uma singularidade extrema, como referi anteriormente, perante a escassez dos recursos naturais e pela inqualificável estratificação social.

Numa terra tão pequena e de parcos recursos, com uma população tão numerosa, somos levados a nos questionar como é que, ao longo da História da Madeira, sempre um pequeno grupo social pôde chamar a si toda a riqueza gerada, perpetuando o domínio e a submissão de toda uma sociedade, sem que o poder centralizador do Estado em nada remediasse a desordem regional instalada, cerceasse as dinâmicas económicas regionais abjectas e travasse a implantação dos monopólios de umas quantas famílias estrangeiras.

Esta é a matriz histórica das gentes destas duas ilhas que constituem o Arquipélago da Madeira, por parte daqueles que, em cada momento histórico, dominaram e dominam os madeirenses: mentir e sugar. Mentir para melhor sugar; sugar para melhor mentir. Assim se perpetuaram o domínio e o poder de uns poucos sobre muitos.

Sempre o poder central foi indiferente a esta singularidade extrema de que vos falei. E quando os ventos do 25 Abril aqui aportaram, dias depois, devolvendo a esperança a todos e a cada um dos madeirenses, logo os poderosos das ilhas encontraram tranquilamente o seu corifeu, talhado à sua medida, sob o melhor traje salazarento.

Com um requinte de malvadez de fino porte, usurparam, num primeiro momento, uma visão iluminista de forma de governo para estas duas ilhas da tradição liberal de esquerda, a Autonomia, como contraponto aos ideais libertadores do 25 de Abril, para depois, num segundo momento, normalizada a ruptura histórica do país e instaurada a nova arquitectura jurídica-constitucional, onde estão consignados os princípios autonómicos, voltarem de novo a usurpar o modelo de democracia representativa, parlamentar e pluripartidária, fazendo, na prática, do regime autonómico actual um regime de partido único.

O ódio ao 25 de Abril foi (e é) tão grande que encetaram uma deriva nacionalista, de que hoje os madeirenses são as primeiras vítimas. Como poderiam os poderosos destas duas ilhas conviver com a Liberdade, a Democracia e a Justiça Social?

O suposto desenvolvimento económico e social destes últimos trinta anos seguiu o mesmo princípio: numa terra tão pequena e de parcos recursos, com uma população tão numerosa, um pequeno grupo social pode chamar a si toda a riqueza gerada, perpetuando o domínio e a submissão de toda a sociedade.

Tanto assim é que o nacionalismo madeirense dos novos senhores da Madeira e do Porto Santo obedece ao mesmo princípio de mentir para melhor sugar e de sugar para melhor mentir, para que se perpetue o domínio e o poder de uns poucos sobre muitos.

Por isso mesmo, o embuste monumental de transformar o PSD-Madeira num movimento nacionalista, confundindo propositadamente centralismo com colonialismo, conduziu-nos a esta grave crise financeira, com consequências devastadoras em termos sociais e económicos.

Se este embuste colossal constitui a trave mestra de toda a orientação estratégica do poder político regional destes últimos trinta anos, os novos senhores das ilhas repetem o que os velhos senhores sempre fizeram: mentir para melhor sugar e sugar para melhor mentir, para que se perpetue o domínio e o poder de uns poucos sobre muitos.

A convocação, na prática, de eleições há precisamente um ano, constituindo um colossal logro, enquadra-se nos princípios formulados. E a prova é que o actual governo regional não governa.

O Senhor Presidente do Governo Regional não governa, porque sempre os poderosos destas duas ilhas governaram para os mais privilegiados entre os madeirenses, mas agora, com o agravante, de ter de governar para uma minoria sedenta de poder e de dinheiro fácil. Tudo isto sob o lastro do ideal nacionalista de vocação totalitária.

Se não governa para a maioria dos madeirenses não é porque não saiba, é porque não quer. Porque se quisesse, teria posto a sua inteligência e o seu saber ao serviço de todos. Não o fez, dando a ideia até de que só sabe fazer uma coisa na vida: ganhar eleições, o que não lhe será difícil, tendo em conta a génese e a consolidação do regime autonómico.

Se quisesse governar para todos os madeirenses, o resultado da sua governação teria sido outro. E não se pode queixar de ninguém. Teve tudo nas suas mãos, como os antigos senhores feudais: poder arbitrário, abundância de dinheiro e submissão total.

Faltou-lhe acreditar nos madeirenses, na sua capacidade de trabalho, na sua inteligência e na sua força transformadora. Por isso, podemos afirmar categoricamente que, no que respeita ao exercício poder, o actual presidente do Governo Regional não trouxe nada de novo aos madeirenses. A não ser um conjunto muitíssimo significativo de infra-estruturas e obras públicas que os autocratas e os ditadores sanguinários de todo o mundo costumam apresentar como seu legado histórico.

Só isto e nada mais. E o que é mais grave é que os desafios de hoje e os desafios do futuro, para os madeirenses, são muito mais difíceis de realizar do que aqueles que foram colocados à governação regional, em Março de 1978. Um tempo de governação próximo dos recordes de Salazar e de Fidel Castro.

O Senhor Presidente do Governo Regional não tem condições políticas nem vontade pessoal para enfrentar os desafios do futuro dos madeirenses, porque não está ser capaz de resolver os problemas criados por si próprio, de que ele é o único responsável.

Está atolado, num beco sem saída. O que é isso de trabalhadores do conhecimento e de novas tecnologias? O que é isso de Estratégia de Lisboa? O que é isso dos madeirenses terem altas qualificações? O que é isso de haver empresas competitivas na Região? O que é isso de mérito? O que é isso de responsabilidade individual? O que é isso de trabalhar para atingir determinados objectivos? O que é isso de criar e distribuir riqueza?

Diz o bom senso que se governar tivesse o mesmo significado que trabalhar, e não fosse um mero expediente de perpetuação do exercício do poder, governar para todos os madeirenses seria tão cansativo que ninguém suportaria trinta anos de trabalho árduo.

Aqui está o busilis da questão: a cegueira em relação ao ideal nacionalista madeirense de vocação totalitária é imperdoável e foi germinada no combate violento contra aqueles que professavam os ideais de Liberdade, Democracia e Justiça Social.
(...) Da nossa parte, da parte do PS-Madeira, não vamos baixar os braços. Com a nossa determinação e o nosso trabalho hercúleo, saberemos merecer a confiança dos madeirenses para que possamos mudar o Porto Santo e a Madeira, duas ilhas bem portuguesas plantadas no Oceano Atlântico

Tenho dito.

Assembleia Legislativa da Madeira, 20 de Fevereiro de 2008

João Carlos Gouveia

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