sábado, 5 de dezembro de 2009

Não se regressa a um lugar de onde nunca se partiu!



Contra a minha racionalidade religiosa, convivo, desde sempre, com um certo misticismo bretão, druídico, que me permite reconhecer o espírito da terra. Por isso, a Madeira para mim não é apenas uma ilha, não é apenas um local, não é uma simples referência geográfica. A Madeira que vive em mim tem uma imagem antropomórfica, tem um espírito, uma alma e uma consciência. Por ela sou uma espécie de Átis que ama e vive para a sua deusa Cibele. Submeto-me a ela com a pequenez de um humano, ante a grandeza da divindade. A Madeira é minha utopia, é a representação terrena do paraíso, é o meu delírio onírico, é a minha maior paixão.


Por tudo isto sinto que nunca saí da Madeira. É verdade que estive - e, por mais um acaso dos destino, permaneço – deslocado. Mas nunca esse deslocamento representou uma ausência. Não teria sido possível. Não para mim.


E foi assim que dei comigo em Coimbra, com a esperança e optimismo que se prendem ao olhar dos 19 anos e a Madeira agarrada à voz. Não, não era apenas o sotaque que carregava e carrego comigo, como se fosse o meu bem mais precioso, que denunciava o sangue ilhéu. Quem então me conheceu – aliás, tal como agora – sabia – e sabe! – que, para mim, ser madeirense é mais do que ser natural da ilha: é um estado de alma, é a forma mais elevada de ser eu próprio.


A sombra da Madeira que o Sol do ocaso projecta sobre o Atlântico – e que suporta a lenda da Ilha de Arguim – acompanha-me desde então e não permite qualquer dúvida acerca da minha origem ou do meu destino. Quem me conhecia sabia que não havia concorrência possível, que a Madeira estava-me inscrita no sangue.


Se Coimbra contou? Se consegui libertar-me das inevitáveis amarras que nos podem atrofiar? Claro que sim! A veneração que dedico à Madeira jamais poderia ser motivo de empobrecimento pessoal, jamais poderia ser causadora de perda ou dano. Para além de que, por vezes, é preciso sair para que estejamos dentro. É preciso que nos transformemos em um outro, para que sejamos mais radicalmente nós próprios. E esta aprendizagem foi realizada. As oportunidades não foram desperdiçadas. Cresci com os outros, apreendi a grandiosidade do que é diferente. E isso apenas foi possível porque me desloquei e é a razão pela qual preconizo a saída da Ilha, como aprendizagem. É imperioso que saiamos, que nos permitamos ser desvelados perante olhares diversos.


Quando, em 2001, regressei ao Funchal, senti ter regressado a casa. Afinal, ao contrário do mito grego, não apenas o percurso era importante. Ítaca também o era, como meta, como objectivo primordial.


É verdade que o sopé do Pico da Cruz já não era o mesmo. O amontoado de bananeiras tinha sido substituído por uma floresta de betão. Os amigos já lá não estavam – não como os imaginávamos.


Mas o cheiro que se entranha em nós, a maresia impregnada de humidade que se cola, o sol derramado sobre o mar quando se esconde atrás do Cabo Girão e, sempre e acima de tudo, o horizonte, mantinham-se inalterados. E se perdia alguma coisa em termos de identificação – intelectual, acima de tudo! -, a verdade é que essa perda era compensada pela mesma matriz histórica, geográfica e cultural, que partilhava com quem então me rodeou. O ventre de onde nascemos era o mesmo. E esses são laços poderosos.


Porque o que me caracteriza não é apenas a minha formação; não é apenas a minha profissão; não são apenas os meus hóbis, ou as leituras que fiz. Não! O que eu sou é o sangue que me corre nas veias e que rasga todo o corpo. E esse confunde-se com a neblina que cobre o Pico do Areeiro, com os ribeiros que recortam a Madeira e com as levadas que a esventram. Sou o olhar que se perde na majestade das montanhas, ou na imensidão do mar.


Se foi fácil a transição? Se regressei diferente? Se tinha outras aspirações? Se sentia que a as fronteiras naturais da ilha me poderia aprisionar? Tudo isso é verdade e tudo isso é mentira. Porque, como disse, não me parece ser possível regressar a algum lugar de onde nunca se partiu. E eu, verdadeiramente, sinto que nunca parti!

Sancho Gomes

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