Saí com 18 anos. De Lisboa conhecia as principais ruas e tinha as referências que curtas estadas em férias me permitiam.
Na sala de embarque tinha duas malas cheias, uma namorada de nome Paula, que veio à aventura comigo (espero que ela não leve a mal a referência, mas já passaram tantos anos…) e uma dose inacreditável de vontade de ver e viver aquilo que para mim era novo.
Na Portela tinha um primo do meu pai, que simpaticamente me hospedou em Carnaxide, durante o primeiro mês de Lisboa. Fiquei agradecido pelo gesto mas com a certeza absoluta de que, não tivesse eu encontrado vaga em casa da D. Arlete, no Bairro de Alvalade, teria regressado ao
Funchal de malas aviadas em dois ou três meses. O trânsito do IC 19 e os autocarros da Vimeca, para onde me atirava após as rituais correrias contra o tempo que me deixavam sem fôlego e como saudades do “44” amarelo e branco que na minha cidade me depositava à porta de casa em pouco mais de 10 minutos teriam dado cabo deste que vos escreve.
Mas providência divina não quis deixar-me desamparado. E lá surgiu, nas catacumbas do “velho” ISCTE, um anúncio de um quarto – banho diário – relativamente barato ali para os lados de Alvalade. Apaixonei-me por Lisboa na Avenida Rio de Janeiro, num prédio “rosa estado novo” encostado ao quartel de Bombeiros do
bairro construído nos terrenos do visconde que fundou o meu clube.
Foi ali que percebi que afinal Lisboa era mais pequena do que o Tejo e que se podia navegar sem bússola para quase todo o lado. Foi daquele quartel-general sólido que parti à descoberta da cidade. Primeiro timidamente. Depois avidamente, na companhia de dois dos meus mais féis e queridos amigos, o Rui e o Diogo, lisboetas empedernidos.
Como é óbvio não aguentei muito tempo as regras rígidas, quase vitorianas, da casa da D. Arlete e quando pude, uns meses depois, mudei-me para um apartamento alugado por uns compinchas do Funchal, onde me senti em casa pela primeira vez na velhinha capital do império.
Confesso o meu pecado: apaixonei-me mesmo por Lisboa (e em Lisboa, por acaso). Gosto do movimento e da sensação de anonimato relativo. Gosto do novo que se apresenta todos os dias. Gosto das manhãs frias, como aquela em que vos escrevo. Gosto da cor da cidade. Gosto do miradouro da Graça com a sua esplanada onde, com sorte, aos domingos à tarde se ouve Tom Waits e Leonard Cohen. Gosto do Bairro Alto e de Alfama. Gosto do fado da Tasca do Chico e das noites do Lux e da Kapital. Gosto dos jogos em Alvalade e dos rissóis do Tico-Tico (não conhecem? Experimentem…). Gosto da falsa eternidade da cidade. Enfim, gosto de Lisboa, onde volto sempre que posso (hoje estou cá, a propósito).
Pode parecer-vos estranho começar um texto sobre um regresso elogiando tão calorosamente o sítio de onde se parte. Pois é, meus caros leitores, mas para se perceber o ponto de chegada há que entender a casa de partida. Ou estarei errado? Digam-me vocês, que simpaticamente dedicam o tempo a ver estas linhas.
Meti-me no avião rumo ao Funchal – contrariado, confesso – no final de 1999, já lá vão dez anos. Naquele tempo, não era fácil a um finalista de Sociologia encontrar emprego na capital do império. Bem tentei, mas com o sotaque funchalense que Deus me deu - e que eu me recusei a perder - até os call-center se fecharam a sete cadeados.
Sem dinheiro, voltei para a minha cidade – por paradoxal que possa parecer, sempre considerei o Funchal como “a minha cidade”.
Podia dizer-vos que foi fácil. Que tinha saudades da sopa da minha avó, da cama feita pela minha mãe, do ténis de sábado à tarde, das espetadas e do bolo do caco. Era um belo final de texto, ou não? Previsível, como um blockbuster americano. Imaginem a cena final:
- um abraço da mãe sob o sol resplandecente de Dezembro. Amigos à espera para uma festa surpresa. Planos abertos, com uma musiquinha suave e verde, muito verde, como pano de fundo. Sobe depois o genérico. Por ordem alfabética…
Pois bem, meus caros amigos. Destruam a cena idílica. O regresso foi difícil. A sopa da avó sabia mal. Embirrava solenemente com a maneira como a minha mãe fazia a cama. No ténis, a minha esquerda deixara de funcionar e a direita entrava sempre tarde e curta. Os amigos estavam com pouca disposição para festas, uns tão desorientados como eu, outros (des)orientados de outra maneira, casados e pais de filhos, mecânicos responsáveis em belas oficinas auto.
Faltava-me o novo, a liberdade de movimentos, os desafios que a transformação operada em mim por Lisboa pedia. Lamento desiludi-los, meus caros conterrâneos, mas foram mares difíceis aqueles em que naveguei nos primeiros tempos.
Sabem, devo confessar-vos uma coisa. As cidades e os países provocam um efeito estranho em mim: o de querer a todo o custo pertencer-lhes. Não concebo as viagens senão como uma experiência de vivência e de integração. Fiz-me entender? Talvez não tenha sido tão claro como gostaria, mas citando o maior madeirense vivo (desculpem-me se ofendo alguém, não é de propósito), Herberto Helder, é uma questão de estilo. O estilo necessário para pôr em ordem a “desordem estuporada da vida”.
Bem, o facto de ter encontrado um estilo - às vezes confuso, eu sei - e a sorte que me garantiu um emprego de que gostei à partida, contribuíram para que aos poucos me voltasse a integrar na “minha cidade”.
Percebi então que se Lisboa não é maior que o Tejo, o Funchal, e a Madeira, podem ser maiores do que o Atlântico. Basta encontrar um estilo. E usar alguma imaginação.
Gonçalo Nuno Santos
Nenhum comentário:
Postar um comentário