quinta-feira, 15 de maio de 2008

ACORDO ORTOGRÁFICO - In extremis: ortografia, deputados e bom senso, por João Andrade Peres



Público de hoje:

In extremis: ortografia, deputados e bom senso
João Andrade Peres
Deixar ao livre-arbítrio de cada cidadão a escolha da grafia é completamente absurdoDeverá ser amanhã votada na Assembleia da República uma proposta de resolução aprovada pelo Governo que poderá levar o Acordo Ortográfico de 1990 a ter força de lei. Apesar de não ser o Acordo que vai ser apreciado, mas apenas os mecanismos legais da sua entrada em vigor nos países signatários, tem-se assistido a um aceso debate sobre os seus meandros técnicos, possivelmente porque, após a derrota da péssima versão de 1986, a maioria julgou o assunto encerrado e só recentemente, quando um ministro falou de ratificação para breve, voltou a avaliar o que estava em jogo.
Confesso que abomino ler em ortografia anterior à reforma de 1911, com palavras como "archaico", "philosophia", "accepção", "construcção", "auctor", "succeder", "alumno", "escriptorio", "comprehender", "elle" ou "lyceo". Fico sempre grato à lei da República que livrou a língua portuguesa do que hoje sinto como ganga pesada e inútil, resultante da etimologia e da irregular grafia portuguesa anterior ao século XX. Sem a mudança, talvez convivesse bem com aqueles "horrores", mas, educado depois dela, só posso achar a nova escrita mais simples (mais "limpa" e "leve", por isso mais bela) e, num plano técnico, mais orgânica e de mais fácil aprendizagem. Nada tenho, pois, a opor a reformas ortográficas que visem a simplicidade, a clareza e a organicidade da escrita. O Acordo em causa, com coisas boas e outras nem tanto, não serve sempre bem estes desideratos. Todavia, neste momento, mais do que discutir deficiências linguísticas, julgo que há que admitir que os decisores políticos acharão que um Estado de palavra não está em condições de denunciar um Acordo firmado há dezassete anos e que, assim sendo, o que urge é limitar ao máximo os efeitos negativos da sua aplicação.
O Acordo tem o defeito gravíssimo de admitir grafias facultativas para a língua portuguesa em toda a sua extensão, sem quaisquer restrições além da existência (onde quer que seja) de uma "pronúncia culta" que as sancione. Segundo a sua letra, passam a ser legítimas onde quer que se fale português todas as variantes gráficas dos seguintes pares (entre muitos outros): fenómeno/fenômeno, aritmética/arimética, amnistia/anistia, amígdalas/amídalas, súbdito/súdito, visitamos (ontem)/visitámos (ontem), recepção/receção, espectadores/espetadores, intersecção (de conjuntos)/interseção (de conjuntos), (o) cacto (secou)/(o) cato (secou), (o Tejo) desagua (em Lisboa)/(o Tejo) deságua (em Lisboa), (a Polícia) averigua (o crime)/(a Polícia) averígua (o crime). Bastam estes exemplos para se perceber o caos em que, se corroborada, a interpretação literal do Acordo, que tem sido assumida pelos seus opositores e não refutada pelos defensores, lançaria a língua portuguesa. Custa-me a crer que o entendimento dos autores do documento admita que, em Portugal, dois alunos portugueses (ou brasileiros, no Brasil, etc.) sentados lado a lado ou dois professores em salas contíguas poderiam usar livremente as grafias alternativas. Tal entendimento, deixando, em última análise, ao livre-arbítrio de cada cidadão a escolha da grafia, é a meu ver completamente absurdo, pondo em causa a função da língua escrita como factor de coesão social.
O único entendimento do Acordo que reputo razoável é (usando uma velha distinção do linguista Coseriu) o que toma a língua portuguesa enquanto "sistema", i.e., enquanto totalidade integradora das suas diferentes "normas" (ou "variantes"), incluindo normas gráficas. Nesse plano do sistema, faz sentido (com realismo, tendo em conta organizações internacionais, tratamentos computacionais, etc.) colocar a par e considerar realizações legítimas da língua todas as grafias admissíveis nos diferentes países, passando os vocabulários e dicionários de português a incluir as formas alternativas (como estabelece o Acordo), com uma sobrecarga não muito significativa, comparável à da maioria dos dicionários do inglês, que dão as grafias britânica e americana. Não penso, porém, que viole a letra do Acordo a prática de cada Estado, se assim o entender, seleccionar as alternativas permitidas pelo sistema que serão adoptadas na sua ordem interna, no âmbito limitado do sistema de ensino e da produção oficial de documentos (e, colateralmente, p. ex., da publicação de obras com financiamento público e não destinadas exclusivamente a países com outras opções normativas). Tão simples quanto isto: todas as variantes previstas pelo Acordo são reconhecidas como língua portuguesa, mas em cada Estado, nos domínios de uso referidos, vigora a variante ortográfica que melhor se lhe adapta. Nas instâncias internacionais, qualquer variante poderia ser usada, com regras simples: p. ex., na ONU, se o Brasil for membro do Conselho de Segurança, será usada uma opção brasileira, na UE será a portuguesa, na CPLP será a do país que presidir, e por aí fora.
É imperioso que os deputados, a 15 de Maio, e subsequentemente o Presidente da República usem todas as suas capacidades legais ou o seu magistério de influência para evitar a imensa perturbação que adviria da interpretação corrente do Acordo. Tal só se conseguirá se a sua entrada em vigor ficar condicionada a uma definição inequívoca do seu alcance e modo de aplicação no âmbito nacional. Para este fim, o Governo precisará de nomear de imediato uma comissão de peritos (incluindo, entre outros, linguistas, professores de Português, neuropsicólogos, psicolinguistas e sociólogos, com intervenção das Universidades e não apenas a Academia das Ciências de Lisboa) que fique incumbida de, com base em estudos sérios, fixar os critérios de selecção das opções previstas e acompanhar a delimitação do vocabulário ortográfico parcial da língua portuguesa a adoptar em Portugal nas esferas de uso referidas. A margem de manobra que o Acordo permite é muito grande e, se for seguida esta via, pouco de irremediável estará já feito. É verdade que, com algum risco de alterações indesejáveis na pronúncia, teremos obrigatoriamente de passar a escrever ator, direção e ótimo, mas quem sabe se daqui a umas décadas não virá alguém celebrar, como eu acima, a agradável leveza da escrita portuguesa. E, mesmo que assim não venha a ser, o Brasil bem merece o pequeno sacrifício de umas tantas consoantes mudas. Linguista. Professor catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

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