sábado, 27 de agosto de 2011

As Nossas mentes

Britânicos essenciais na Autonomia

A presença britânica na Madeira foi essencial para construir a ideia de autonomia, assim como para impedir as intenções de independência', conclui Paulo Miguel Rodrigues na tese de Doutoramento 'A Madeira entre 1820 e 1842: Relações de poder e influência britânica', apresentada recentemente na Universidade da Madeira (UMa).
A dissertação, orientada pelo professor António Ventura, da Universidade de Lisboa, lança novas perspectivas sobre a História da Madeira, que são fundamentais para entender tanto o êxito, como o fracasso, quer de políticas, quer de pressões, britânicas ou portuguesas, insulares ou continentais.
Ficou 'claramente demonstrado', diz Paulo Miguel Rodrigues, que o elemento britânico na Madeira foi fundamental para a criação e desenvolvimento da ideia de autonomia insular que, ao contrário do que tem sido veiculado, 'não começa só no final do século XIX ou início do XX'.
Segundo o historiador, as raízes autonómicas têm a sua génese cem anos antes, durante as guerras napoleónicas, e explicam-se por diversos factores, de ordem política e económica, sem esquecer o natural 'afastamento geográfico', a 'descontinuidade territorial', então agravadas pela ida da coroa para o Brasil.
Não se trata de uma autonomia política, como hoje a concebemos, mas, acima de tudo, de 'uma autonomia de facto', já com reivindicações de carácter legislativo, para salvaguardar a especificidade insular, esclarece. A distância fez com que as decisões fossem tomadas na ilha. 'Na prática, quem estava cá decidia. E a presença britânica pugnava por isso junto do poder central, em Lisboa ou no Brasil. Simultaneamente, enquanto defendia essa autonomia, foi o garante da soberania portuguesa na Madeira'.
A investigação revela que em Londres, no Funchal ou em Lisboa o elemento britânico actuou no sentido de garantir a estabilidade, a harmonia e a paz política na Madeira, quer perante as ameaças de instabilidade interna, quer perante os reflexos insulares das disputas externas.
A Inglaterra 'conseguiu fazer sempre com que não existissem conflitos, como sucederam no espaço continental e nos Açores, porque não interessavam à dimensão comercial do seu império. Foi fundamental para evitar que o sangue se derramasse na ilha'. A aposta era na paz. Interessada nos negócios, a tranquilidade e a ordem eram condições essenciais.
Existem vários tempos da presença britânica na Madeira, conforme recorda. 'Não há dúvida que a partir das guerras napoleónicas começa um novo tempo'. Entre 1807 - 1814 a ilha esteve ocupada por tropas inglesas, que obrigam quer militares quer civis a jurar Jorge III. 'Durante três meses a Madeira é britânica'. A situação regride com o grande perdão de D. João VI, que se encontrava no Brasil, e a soberania é devolvida a Portugal em 1808.
Na perspectiva de Paulo Miguel Rodrigues, este período constitui 'uma porta aberta' para a entrada de várias dezenas de britânicos. Algumas das principais famílias de hoje (Blandy, Miles, Leacock…) têm a sua presença inicial directa ou indirectamente ligada a este período, embora ainda sem o poder e a projecção que mais tarde iriam adquirir. Há depois, dos anos 30 a 60, uma renovação geracional com a vinda de outros filhos e familiares afastados.
Apesar deste episódio, a tese demonstra que a Inglaterra 'nunca teve qualquer interesse em integrar a Madeira no seu 'Império formal'. Mas sempre aceitou a sua inserção no 'Império informal'. Era menos incómodo, causava menos despesas, concedia as mesmas facilidades e facultava-lhe a mesma projecção atlântica. Aliás, sempre que se falou em vender a ilha, a iniciativa partiu de Portugal'.
As hipóteses colocaram-se por duas vezes durante o Liberalismo, pois para Portugal a Ilha funcionava como 'um bem capitalizável' em momentos de crise.
A sua importância económica e financeira era elevada. 'A Madeira e o Porto constituem neste período a maior fonte de riqueza do país. No caso da ilha, as receitas provinham da Alfândega do Funchal. Os rendimentos da Junta da Fazenda da Madeira, o órgão colegial que geria os rendimentos insulares, eram enormes. É ela que sustenta, até aos anos 30, as relações externas, pagando os diplomatas portugueses nas cortes europeias, enquanto, ao mesmo tempo, dava cobertura aos empréstimos estrangeiros de Portugal'.
Os governos portugueses - afirma - sempre procuraram tirar partido do interesse britânico pela Madeira. Tinham dois objectivos primordiais: permitir a afirmação e o reforço interno das facções que se encontravam no poder e a criação de condições para capitalizar a situação da ilha (contrapartidas de carácter político, diplomático, militar ou financeiro).
Durante as lutas entre absolutistas e liberais, cada um dos lados tem consciência que os rendimentos da Junta da Fazenda da Madeira são fundamentais. 'A grande expedição liberal que desembarcou nos Açores permaneceu ali por mero acaso, pois dirigia-se para a Madeira'.
Nos Açores, D. Pedro deu ordens expressas ao duque de Palmela para colocar a hipótese de vender a ilha. Mas nem sempre - alerta o historiador - esse desejo era efectivo. Servia de meio de pressão junto dos ingleses dando-lhes a preferência, admitindo ou sugerindo que o outro possível comprador era a França.
Recorda que até 1821 a Madeira é adjacente ao Brasil. Aliás, a posterior criação do conceito de 'ilhas adjacentes dos Açores e da Madeira' é 'artificial. O governo que está em Lisboa tem necessidade de afirmar que os arquipélagos pertencem a Portugal, pois existia um medo claro que o Brasil, independente, ficasse com a Madeira e os Açores. Quem o impede é a Inglaterra ao dizer claramente que pertencem a Portugal, mas devem ter capacidade de decisão'.
A tendência centralizadora do poder liberal estabelecido em Lisboa, após 1834, acabou por contribuir para que a comunidade britânica residente se reorganizasse e reforçasse os seus próprios poderes, contando para isso com o apoio de diversos sectores locais que viam nisso a defesa dos seus próprios interesses e reivindicações.
Por outro lado, contribui para o fortalecimento dos poderes insulares, um conceito novo que Paulo Miguel Rodrigues introduz. ' Na historiografia nacional existem os poderes central e local, mas considero que para a Madeira se deve acrescentar a noção de poder insular, então representado pelo governador, pelo corregedor e pelas Junta da Fazenda, do Desembargo do Paço e outras. Até aos anos 30, a existência das referidas Juntas demonstra que a Madeira tinha uma capacidade de decisão por vezes autónoma.'
No plano das relações sociais, políticas e económicas - segundo reafirma - não ocorreu durante o período em estudo qualquer movimento organizado, por parte dos britânicos, com o objectivo de fazer frente aos madeirenses, enquanto tais. 'Não existem quaisquer dados que nos permitam afirmar essa oposição'.
Paulo Miguel Rodrigues desmistifica a ideia que seriam britânicos os únicos a usufruir dos negócios. 'Ao lado de cada britânico estavam também interesses de algum madeirense, quer por ser mercador, negociante, proprietário, comerciante, quer por ser caixeiro de uma casa ou firma britânica.'
Por outro lado - salienta - 'se há algo que enforma os negócios neste período é a corrupção activa e passiva, impossível de controlar, na medida em que a Madeira era porto aberto. Esse tipo de actividade interessava a todos'. Foram significativos os esforços e pressões que os britânicos empreenderam, por exemplo, para liberalizar a Pauta Alfandegária ou para instituir um porto franco, 'mas ao seu lado estavam também os madeirenses. O interesse comum entrava sim em choque com os interesses do poder central e a sua política proteccionista'.
A ideia que a comunidade britânica constituía um bloco e era unida não tem também rigor histórico. 'Na verdade aquilo que mais se registou foram as profundas divisões, com destaque para as que tinham um fundamento religioso, político, comercial e até de carácter nacional, tendo em conta o choque frequente entre ingleses e escoceses, sem esquecer os irlandeses.'
Conforme explica, não existiu na Madeira uma, mas várias comunidades britânicas, com predomínio para o elemento escocês (e não inglês), cuja convivência era por vezes forçada. Este facto remete-nos para o choque entre 'antigos e modernos' que se sentiu com maior acuidade a partir de 1828, quando se levantou o problema de definir a atitude a adoptar na guerra civil portuguesa, acrescenta.
'Verificou-se então, claramente, uma maior disposição entre os elementos que se tinham estabelecido recentemente na ilha para assumirem um envolvimento directo no conflito, ao lado dos liberais, enquanto os 'antigos', apenas com algumas excepções, optam por se manter neutrais ou por assumirem uma posição de compromisso com o novo poder miguelista'.
As diferenças de estatuto entre os próprios britânicos eram também notórias. A conhecida 'British Factory' reunia apenas a ínfima parte dos principais e mais antigos mercadores estabelecidos na Madeira. Constituíam uma elite.
'Havia ainda diferenças entre comerciantes, mercadores e negociantes, pois entre cada um destes grupos existiam diversos graus de projecção e influência social e política.' Não apenas por estas razões, 'mas também por elas', em particular durante o período da guerra civil, foram frequentes as disputas e os conflitos entre a comunidade britânica residente e o 'Foreign Office'.
A investigação demonstra também que sem o suporte dos materiais e géneros provenientes dos EUA e das províncias britânicas da América do Norte a manutenção da Madeira, na esfera de influência da Inglaterra, teria sido, senão insustentável, pelo menos difícil de alcançar em determinados períodos.
Paulo Miguel Rodrigues conclui que durante a primeira metade do século XIX 'os interesses britânicos foram os interesses da Madeira'. A partir dos anos 20, a ilha viu a sua importância estratégica renovada, pela ligação dinâmica que permitia com o espaço mediterrâneo-africano, de Gibraltar à Serra Leoa e Cabo Verde, passando pelas Canárias, zonas em relação às quais a França e os EUA demonstram um crescente interesse. Uma questão que hoje volta a ser premente.
O Funchal revelava-se um ponto de apoio fundamental para o seu controlo. A sua importância geo-estratégica fazia assim com que 'o relacionamento anglo-madeirense não privilegiasse o conflito, mas a prudência. O desejo quase sempre mútuo de encontrar um ponto de equilíbrio'.
A partir dos anos 40, a Madeira vê de novo a sua importância estratégica aumentar por causa do carvão, pela necessidade que os navios britânicos tinham de parar na ilha para se abastecerem. 'Foi uma fonte de rendimento para a coroa portuguesa, mas também para o império britânico'.
Na sua perspectiva, perceber a História contemporânea da Madeira e a presença britânica na ilha 'obriga a ter a noção clara do triângulo: Funchal, Lisboa, Londres'.
Por isso considera urgente continuar a investigar nestes três vértices para que, com renovados fundamentos, se possa substituir aquilo que considera 'a imaginária e pouco concreta 'perfídia' britânica pelas noções de cumplicidade e de interesse mútuo e comum, que se podiam realizar, é certo, por pressões e influências - até por ameaças directas ou veladas - mas que não olhavam a bandeiras ou a partidos, nem tinham apenas um sentido único'.
O regime Salazarista - diz - contribuiu e muito para que não se estudasse a História contemporânea quer nacional quer da Madeira, pelo simples facto que iríamos estudar revoluções, revoltas e ideias liberais. 'No caso da Madeira, isso é notório na ignorância que persiste a respeito do desenvolvimento histórico da Ideia de Autonomia e das relações de poder', que preenchem com altos e baixos toda a história madeirense do século XIX e XX, e cujo conhecimento - como defende - poderia evitar, a vários níveis, a repetição de equívocos e a aposta em estratégias que o passado demonstra estarem erradas ou serem inconsequentes.
Bilhete de Identidade


Nome: Paulo Miguel Rodrigues

Idade: 36 anos

Naturalidade: Funchal
Britânicos essenciais na Autonomia


Percurso académico e profissional: Licenciatura em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, concluída em 1992. Mestrado em História Contemporânea subordinado ao tema 'A ilha da Madeira durante as guerras napoleónicas - A importância estratégica e a defesa', terminado em 1999, na citada universidade. Doutoramento sobre as relações de poder e influência britânica na Madeira entre 1820 e 1842, concluído em 2007, na Universidade da Madeira.
Iniciou a actividade docente em 1995. Integrou a Universidade da Madeira como assistente. Hoje é professor auxiliar no Departamento de Estudos Romanísticos e director de curso da Licenciatura em Ciências da Cultura. Lecciona as disciplinas de História das Ideias Políticas, História Contemporânea de Portugal e Cultura Portuguesa.
Ao nível da investigação, para além de conferências em Portugal e no estrangeiro, tem trabalhado em Londres, no 'Public Record Office / National Archives', nos fundos do 'Foreign Office', 'War Office' e 'Admiralty'.

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