sábado, 30 de agosto de 2008

O que faz falta: escrutínio, tónus crítico, crítica (I)

Lido no Público
30.08.2008,

José Pacheco Pereira


Admirava-me pouco se o primeiro-ministro não estivesse a preparar uma remodelação, e com ela levasse o MAI


A recente entrevista do ministro da Administração Interna (MAI) à RTP foi mais um exemplo das encruzilhadas deste Governo e do cansaço e impasses em que se meteu. Admirava-me pouco se o primeiro-ministro não estivesse a preparar uma remodelação, e com ela levasse o MAI, cuja adequação à função é, para ser suave, distante.
Vistas bem as coisas, passados três anos, com condições excepcionais de governação (convém sempre lembrar este facto que o Governo nunca refere, uma maioria absoluta sólida, um presidente institucionalmente cooperante e uma oposição muito débil e descredibilizada), os resultados deste Governo são bem medíocres, muitos dos ministros têm mostrado igualmente serem medíocres no exercício das suas funções e o todo só é sustentado pelas habilidades propagandísticas do primeiro-ministro e pela enorme deficiência de escrutínio da governação, quer por parte da oposição (voltaremos aqui), quer pela ausência de uma cultura crítica, de um tónus crítico na vida pública portuguesa.
Até pelo seu carácter estrutural, que vem da nossa história recente, da omnipresença de estado, da escassez de independência face a retaliações, da pequenez do país onde todos são "primos" uns dos outros, da fraca vida intelectual, do débil debate, o problema mais grave que se instalou no espaço público português é um enorme défice de escrutínio da governação. Pode haver um clima depressivo e de "mal dizer", mas não há um clima crítico da governação como é suposto existir numa democracia.
O actual Governo vive nesse e desse clima que fomenta, utilizando dois grandes instrumentos evidentes, e um menos evidente e mais sombrio. Os instrumentos que estão à vista de todos, mas cujo próprio escrutínio é também ferozmente atacado (veja-se como Eduardo Cintra Torres, o crítico de televisão deste jornal, é patrulhado ao milímetro, ameaçado por processos judiciais e por uma campanha de descredibilização, a arma típica para isolar os críticos), são por um lado o seu controlo da comunicação social do estado; e depois a sua própria máquina de informação e comunicação a partir dos assessores de imprensa e das agências de comunicação do primeiro-ministro, dos ministérios e dos gabinetes dependentes do estado, incluindo empresas públicas, etc., etc. A comunicação social do estado para além de doses de "circo" que nenhum serviço público justifica, serve acima de tudo como instrumento de controlo dos danos, limitação da agenda aos temas benignos e do acesso ao pódio apenas aos críticos "construtivos". O aspecto mais sombrio é o da utilização da máquina do estado para intimidar, pressionar e punir todos os que não aceitam a "ordem" governamental.
Poucas vezes na história da democracia portuguesa uma tão vasta máquina de poder está tão "consensualmente" e invisivelmente instalada. Aliás, todos os dias se reforça com muito cuidadas nomeações e escolhas quer para a comunicação social pública quer privada, onde o longo braço do Governo consegue chegar, "aconselhando" os privados contra os custos de fazerem escolhas que podem ser vistas como "hostis" ou "excessivas". Em três anos de governação, só há um caso em que esta máquina não controlou os acontecimentos, embora tenha recuperado na fase final, e em que a opinião pública (blogues, ordens profissionais, técnicos e, no fim, comunicação social) actuou no sentido de evitar um erro clamoroso que o Governo se preparava para fazer: o "caso" do aeroporto da Ota.
Vejamos uma lista dos procedimentos em que este Governo, e em particular o primeiro-ministro, assenta a sua governação e a sistemática ausência de escrutínio que já é mais que visível pelos resultados nestes últimos três anos:

1) Anúncios de medidas inexistentes ou que não passam de processos de intenção
Exemplo recente: o ministro da Administração Interna foi confrontado na sua entrevista televisiva com uma dessas medidas anunciadas pelo primeiro-ministro há mais de um ano e teve que admitir que ela não teve qualquer implementação. Foi o caso do anúncio, no Parlamento, pelo primeiro-ministro, de que "as alterações orgânicas na GNR e PSP vão libertar 4800 efectivos para funções operacionais" (Lusa, 28/2/2007). Como se pode ver pelos anúncios vários feitos nessa sessão parlamentar, nenhuma das medidas foi cumprida nos prazos referidos e muitas nem sequer foram iniciadas mais de um ano depois do seu anúncio. Se um igual escrutínio fosse feito a muitos dos anúncios deste tipo, ver-se-ia que a regra é o incumprimento total, parcial ou muito atrasado e incipiente das medidas anunciadas. É assim que o primeiro-ministro "ganha" os debates parlamentares.

2) Anúncios de medidas assentes ou na omissio veri ou na sugestio falsi; anúncios propagandísticos de medidas sem verdadeiro significado ou impacto; anúncios de medidas, iniciativas, projectos ou realizações que não são de autoria ou responsabilidade governativa, etc.
O mundo virtual dos anúncios do Governo daria toda uma série de artigos, de tal maneira aí está centrado o grosso da propaganda governamental (traduzida nos "momentos-Chávez" da RTP) e também as mais graves ausências de escrutínio da comunicação social. Um exemplo recente: o "computador Magalhães", anunciado como sendo "português", como dando origem a um elevado número de postos de trabalho e como fazendo parte de um investimento participado pela Intel. Nada disto é verdade, mas tudo isto foi dito pelos gabinetes governamentais e divulgado pela Lusa. É interessante notar a simbiose entre as notícias da Lusa e os anúncios governamentais na construção da "imagem" de um evento antes de ele se realizar.
Criada a "imagem" do evento, principalmente na televisão, de pouco valem as informações mais precisas, de nada vale o responsável pela Intel ter dito que o investimento era "zero", vir a saber-se, em grande parte pela acção dos blogues, que o "Magalhães" nada tinha de português e que não era líquido que uma opção típica de um país do Terceiro Mundo (para quem o Classmate da Intel foi pensado, tal como se apresenta na Internet: "focused on people in the world's developing communities") fosse adequada na Europa, onde programas deste tipo não existem, por regra. As armas são desiguais.

3) Ausência de fact cheking
Num país onde se valoriza o debate público, há sempre quem faça em tempo útil a verificação dos factos com origem governamental. Em Portugal, isso quase não existe, em detrimento da repetição acrítica da propaganda. Um exemplo recente encontra-se na última entrevista do MAI, quando este referiu que o verdadeiro aumento da criminalidade se dera nos anos 2003-4, os anos do Governo PSD-CDS.
Por muita asneira que os governos PSD-CDS tivessem feito, não me parece que se tenha assistido a um incremento exponencial da criminalidade, que possa ilibar ou sequer ser comparado com a situação actual. O MAI não resistiu a fazer aquilo que os gabinetes de propaganda normalmente preparam, ou seja, comparações fixadas nos anos 2003-4. Acontece que a maioria dessas comparações não tem qualquer sustentação estatística em comparação com outras, com muito mais significado, como seja com os governos Guterres, que a actual propaganda evita como o Diabo a cruz. Aliás, as tendências estatísticas que permitem uma análise de mais longa duração mostram que o crescimento de todos estes problemas vem dos governos PS.
Fui ver os relatórios de segurança e as suas estatísticas, ou seja, fazer o fact checking do que o MAI disse. O que encontrei foi o oposto do que ele disse:
"Pela análise do gráfico, pode-se verificar que, entre 1998 e 2003, houve uma subida gradual da criminalidade participada, com excepção para o ano 2000, em que não houve grande oscilação de valores. A partir do ano de 2003, a criminalidade desceu nos dois anos consecutivos, voltando a subir um pouco no ano de 2006 e estabilizando no ano de 2007." (Relatório Anual de Segurança Interna - Ano de 2007)
No que diz respeito à "criminalidade grupal" o ano recorde é 2006. Mesmo para a "criminalidade violenta e grave", que era o que se discutia, e para além de dificuldades de comparação estatística suscitadas pelo incremento de crimes como o car jacking , o que se diz é que "este tipo de criminalidade tem vindo a subir, com excepção para o ano 2005 e para o ano de 2007, no qual se assiste à maior descida observada nos últimos dez anos e ao menor valor dos últimos seis anos" sendo que essa descida de deve à "diminuição observada no crime de roubo na via pública (excepto esticão)". Como se vê, o MAI enganou-nos e é pena que muitos governantes não encontrem jornalistas preparados com os números, para não haver benefício do infractor. Historiador
(Continua)

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