domingo, 18 de janeiro de 2009

Não tenhamos complacência com nenhuma das partes

Israel, os palestinianos e o Hamas, vítimas e algozes

Manuel Carvalho, no Público


Neste preciso momento, de pouco vale a razão de Israel. O que mais nos deve preocupar é o drama humanitário que o seu exército causou em Gaza



A ofensiva militar de Israel em Gaza e os cada vez mais pungentes relatos de sofrimento humano que está a provocar fizeram já esquecer o problema da proporcionalidade da resposta militar a uma agressão externa. Com o ataque a aproximar-se no fim, sobram algumas dúvidas e muitas certezas para o balanço. Que o Hamas é uma execrável organização terrorista a pedir uma severa punição, poucos duvidam; que Israel tinha o direito a defender os seus cidadãos, poucos contestam; mas nenhuma argumentação racional em termos de culpa primária pelo conflito se pode sobrepor aos custos humanitários que provocou. Face à brutalidade da operação militar que já matou 335 crianças, que deixou milhares de outras privadas de alimentos básicos ou de cuidados de saúde, que permitiu que bebés ficassem dias em cima dos cadáveres dos seus pais sem que houvesse possibilidade de os resgatar (a imprensa relatou um destes casos num apartamento do bairro de Zeitun), toda a discussão sobre quem é a vítima e o algoz do conflito perde sentido. Agora, neste preciso momento, de pouco vale a razão de Israel. O que mais nos deve preocupar é o drama humanitário que o seu exército causou em Gaza.
Tem sido fácil inventariar os argumentos de uma e de outra parte do conflito e tomar partido. Foi simples estabelecer zonas cinzentas que permitiram responder aos que têm opiniões contrárias com o eficaz "sim, mas...". É óbvio que a primeira vítima desta guerra foi, como sempre, a verdade ou, se preferirmos, a razão. Tudo isto é certo, tão certo como o desejo que muitos tiveram de ver os militantes extremistas do Hamas julgados por crimes contra a humanidade ou os líderes políticos e militares de Israel a encararem de vez o problema palestiniano como uma questão que jamais se resolverá apenas com a lei das armas. Mas houve uma hora em que nada disto fez sentido. Houve um momento em que as imagens de privação, dor e desespero de pessoas inocentes se impuseram. Era isto que queria o Hamas? Sem dúvida, mas também era isto que nenhum ser humano devia consentir. Não se trata de pacifismo onírico nem de idealismo utópico: trata-se sim de admitir que nem sempre os fins justificam os meios e que a morte sistemática e indiscriminada de inocentes civis aos quais nem sequer se concede a prerrogativa da fuga é sempre um inaceitável atentado aos valores que nos levam a acreditar na supremacia da nossa civilização.

Israel podia ter toda a razão do mundo ao querer liquidar os terroristas do Hamas, mas não podia querer a nossa compreensão e consentimento quando bombardeava indiscriminadamente militantes e civis, idosos ou combatentes. Quando, para saldar a morte de seis cidadãos seus, provocou mais de mil vítimas do outro lado da fronteira. Quando a operação militar que desencadeou impediu a acção de organizações humanitárias no terreno ou lançou bombas sobre hospitais ou depósitos de alimentos. Quando criou um cenário de violência e sofrimento que hão-de reproduzir por meses ou anos o ódio, a intolerância e a barbárie que supostamente diz estar a combater. Israel, o acossado, mostrou que não tem medo e que está disposto a punir quando e como quiser o seu inimigo até que decida impor um cessar-fogo sobre os escombros de Gaza. Entre o primeiro ataque e a trégua, porém, sobra o rasto da barbárie, a barbárie do mesmo tipo que supostamente o ataque contra o Hamas pretendia responder.
A proporcionalidade da resposta militar é um tema velho, como o provam os debates em torno dos bombardeamentos de Dresden ou Hiroxima, na Segunda Guerra Mundial. Valeria a pena destruir uma das mais belas cidades europeias do Leste com vagas sucessivas de "tapetes de bombas" que causaram a morte de dezenas de milhar de pessoas quando os canhões soviéticos já se ouviam à distância? Era mesmo necessário lançar uma bomba atómica sobre a população indefesa quando o exército japonês estava confinado ao seu arquipélago e incapaz de reagir? A acção de Israel em Gaza recoloca o problema. O Hamas tinha de ser perseguido e desarticulado e os seus dirigentes punidos. Mas quando o preço desta intenção legítima se remunera através de uma acção marcada pela violência indiscriminada e pela violação de elementares princípios civilizacionais, tudo tem de ser repensado e revalorizado. Quando a vítima se transforma em algoz, não merece que a olhemos com complacência.

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