domingo, 25 de janeiro de 2009

Eleições: a fénix da democracia?, Júlia Caré

Publicado no Diário de Notícias

[Democracia]: não nos resta outra alternativa senão defendê-la, questioná-la.


Este incerto ano de 2009 vai chamar os portugueses mais uma vez ao nobre exercício livre e democrático do voto. Num tempo em que dogmas e verdades feitas, erros e princípios universais se confrontam, acontecerão Europeias, Legislativas, Autárquicas, por esta ordem ou não. As campanhas eleitorais já acampam na praça, renovam-se as promessas e apela-se à participação de todos na escolha dos órgãos que comandarão os destinos da "res publica". Os candidatos, putativos ou não, já se posicionam para mais um mandato. Ritual formalizado, com maior ou menor desencanto, com todas as imperfeições que se lhe reconhecem, faz jus às palavras de Churchill: "a Democracia é o pior de todos os sistemas, à excepção de todos os outros". Mas é a outra face da Liberdade. Donde, não nos resta outra alternativa senão defendê-la, questioná-la, continuar a aperfeiçoá-la e ciclicamente votar. Vem a propósito mais uma reflexão sobre a eleição de Barack Obama para Presidente dos Estados Unidos da América, um ponto de viragem na História do mundo. Impensável há umas décadas atrás, aconteceu: a América elegeu o seu quadragésimo quarto Presidente fora da tradição WASP - White, Anglo-Saxon, Protestant (branco, anglo-saxónico, protestante). Emergiu de um sentir colectivo "colourlind" (cego à cor), no país onde, há apenas quatro décadas, Martin Luther King proclamava o seu sonho de justiça, ao marchar vindo do Sul e das profundezas da segregação racial rumo a Washington, pelo direito de "as pessoas serem julgadas pelo conteúdo do seu carácter e não pela cor da pele." Será a eleição de Obama o princípio do sonho de King? Notável orador como King, Obama domina a palavra que galvaniza na linha dos míticos "pais fundadores" da nação americana e do discurso catalizador de um Franklin Delano Roosevelt e do seu "we have nothing to fear but fear itself" (não temos nada a temer senão o medo), a que o slogan "yes, we can" se assemelha. Neste tempo igualmente marcado por incerteza e crise global, a América e o Mundo precisavam reviver ideais adormecidos pelos que tinham decretado o fim da História, a morte das Utopias e ressuscitar a essência do Sonho Americano, devolvendo a Esperança na raiz da Democracia contida nas palavras de Lincoln, "government of the people, by the people, for the people" (governo do povo, pelo povo, para o povo) e a crença numa nova oportunidade. Como um renascer da Fénix.

Os discursos de Obama, quer o de vitória eleitoral quer o de investidura, não prometem efémeras terras de leite e mel, nem os tão anatemizados amanhãs que cantam; falam sim dos desafios, das dificuldades, dos obstáculos a vencer, onde todos, os que concordam e os que discordam, têm lugar e são convocados a participar no trabalho árduo de reconstruir valores e ideais, qualquer que seja a sua origem ou condição, porque todos contam e juntos podem devolver à América o seu lugar no mundo. Que sublimes lições para uma certa práxis política para quem a democracia é só contabilização de maiorias! Será talvez fugaz o regozijo agora sentido e a áurea de messianismo que normalmente rodeia o chamado "estado de graça" dos primeiros cem dias de governação perder-se-á levada na erosão do seu exercício, da maior ou menor resistência ao pulsar de forças condicionadoras e determinantes da acção política. O devir da realidade, a sua complexidade e teia de contradições, os graves problemas de recessão económica de um mundo desigual, instável e violento imporão cedências e recuos, daí resultando amargura, desilusão e desapontamento, em contraponto à imensa Esperança agora sentida. Ir-se-á provavelmente do elogio à crítica, do aplauso à vaia, sem contemplações, complacências ou compreensões; a cadeira do poder é um lugar solitário. Por erradas concepções de liderança, concepções distorcidas de legitimidade e posse, interpretações abusivas de prerrogativas e inerências confunde-se, não raro, o acto de governar a polis com a vã glória de mandar, pelo exercício autocrático do poder. Por vezes escasseia a inteligência, a visão profética, a fidelidade a princípios éticos silenciados nos bastidores, meandros, rotinas e contradições de que se faz também a acção humana na política. Talvez aqui também seja hora de fazer renascer a Fénix. Para bem da Democracia.

Nenhum comentário: