domingo, 22 de novembro de 2009

A propriedade do liberalismo, João Carlos Espada

Uma parte da tradição liberal desenvolve-se, desde o início, em oposição a valores que são caros à esquerda

É o liberalismo "de esquerda"? João Cardoso Rosas escreveu neste jornal, na quinta-feira passada, um artigo em que defende tal tese. Segundo ele, "o liberalismo é de esquerda", tanto do ponto de vista histórico como doutrinal e político-partidário. E o que diz tem, obviamente, pontos a seu favor. Na sua pré--história - podemos remontar às Luzes -, uma parte do liberalismo é efectivamente "de esquerda" (admitindo que esta classificação não envolve ilusão retrospectiva). Mais: cria-se contra a Igreja, símbolo da "direita". Do mesmo modo, o igualitarismo (indiscutivelmente de esquerda) apresenta-se como um seu aspecto importante. E certamente que nos partidos de direita predomina um conservadorismo que entra tendencialmente (embora não de forma necessária) em conflito com o liberalismo.
Mas a tradição liberal - que João Cardoso Rosas me parece por vezes identificar com a tradição progressista - desenvolve-se igualmente, a partir de certa altura, não só pela afirmação de uma auto-suficiência de princípio da sociedade civil, como contra o jacobinismo (e seus predecessores) e contra o igualitarismo radical. Quer dizer que a crítica liberal se faz em boa parte contra a esquerda. Um exemplo. Benjamin Constant sobre Mably: "Ele detestava a liberdade individual como se detesta um inimigo pessoal" (Tocqueville ecoará esta frase ao escrever sobre os fisiocratas: "Eles não odeiam apenas certos privilégios, a própria diversidade lhes é odiosa: adorariam a igualdade até na servidão"). E não vou ao século 20 porque, por razões óbvias, os exemplos são mais que muitos.
Uso "esquerda" e "direita" por facilidade. Porém, em relação aos grandes pensadores do político, será que essa designação faz realmente sentido? E não estou sequer a falar de Platão, Aristóteles, Maquiavel ou Hobbes. Falo de Locke, Montesquieu, Adam Smith, Hume, Burke, Benjamin Constant, Tocqueville, todos, cada um à sua maneira, liberais. São de esquerda ou de direita? E que quereria isso dizer?




É-se de direita ou de esquerda por compromisso com a acção, ou, ao avesso, por preguiça, nas margens do grande pensamento.




Se há alguma acepção em que "liberal" apresenta um sentido aproximadamente unívoco, é no que diz respeito ao quanto se preza a liberdade individual. O indivíduo (um conceito que o liberalismo ajudou a forjar) deve, dentro de contextos sempre variáveis, ter o máximo de liberdade relativamente à regimentação imposta pelo Estado, ou pelos costumes, ou pela opinião pública. Se a direita tem culpas antiliberais no cartório, a esquerda também as tem. E a direita - que estou longe de pretender representar - tem, desde há muito tempo, tanta legitimidade como a esquerda para as denunciar.

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