domingo, 22 de novembro de 2009

Duas culturas políticas

O contraste entre a tradição política anglo-americana e a tradição política francesa corresponde a diferenças entre duas grandes culturas políticas. A esquerda e a direita estão mais perto uma da outra no interior de cada uma dessas culturas políticas do que a esquerda está da esquerda e a direita está da direita em diferentes culturas políticas, João Carlos Espada

A existência de um "mistério inglês" tinha-me sido sugerida por Karl Popper, em conversa que aqui evoquei no ensaio inicial desta série, a 9 de Maio. Ilustrei esse mistério com a pergunta de Lorde Quinton: por que razão produziram as ideias de John Locke no século XVII inglês uma revolução predominantemente conservadora, ao passo que, quando no século seguinte atravessaram o Canal, produziram em França o efeito de álcool em estômago vazio?
Sugeri que esta pergunta exprime a especificidade da tradição política anglo--americana, que também pode ser descrita pelo "milagre da Inglaterra moderna" de Gertrude Himmelfarb e Elie Halevy: que a Inglaterra tenha realizado todas as revoluções do mundo moderno sem recorrer à revolução.
Encetámos então uma longa viagem através de vários autores que, de forma mais ou menos directa, se interessaram pelo mesmo mistério. Em seguida discutimos vários temas comuns às obras desses autores. Iniciamos hoje a apresentação de uma proposta interpretativa. Ela será desenvolvida neste e nos próximos quatro ensaios - que encerrarão esta série.

Duas culturas políticas. Esta proposta interpretativa sublinha que o contraste entre a tradição anglo-americana e a tradição francesa, ou continental, assenta em diferenças fundamentais entre as culturas políticas dessas duas tradições.
Por cultura política não pretendo designar uma doutrina política particular, como o socialismo, o liberalismo ou o conservadorismo. Também não me refiro ao ideário específico da chamada esquerda, ou da chamada direita, nem mesmo do chamado centro. Por cultura política pretendo designar algo que serve de base a essas divisões: algo que talvez pudéssemos designar como o idioma político, ou as categorias conceptuais, que fornecem as referências comuns ou o pano de fundo sobre o qual rivalizam as famílias políticas. Porque acredito que em todas as rivalidades políticas existem pressupostos comuns que de certa forma dão sentido a essas rivalidades.

Direita e esquerda. Basicamente, gostaria de sugerir que as diferenças entre a tradição política anglo-americana e a tradição política francesa correspondem a diferenças entre duas grandes culturas ou tradições políticas. E gostaria de sugerir que as diferenças entre essas duas culturas políticas são mais importantes que as diferenças entre esquerda e direita ou entre socialismo, liberalismo e conservadorismo. Diria mesmo que a esquerda e a direita estão mais perto uma da outra no interior de cada uma dessas culturas políticas do que a esquerda está da esquerda e a direita está da direita noutras culturas políticas.
Por outras palavras, as diferenças entre a tradição política anglo-americana e a tradição francesa devem-se menos a características peculiares que a características comuns da esquerda e da direita em cada uma dessas tradições. Em suma, existem conceitos-chave que são partilhados à esquerda e à direita no interior de cada tradição política.

Três conceitos-chave. Esses conceitos-chave são percepcionados de forma muito diferente, quer pela esquerda quer pela direita, quando se muda de tradição política. É ao conjunto desses conceitos-chave, desses pressupostos muitas vezes não explícitos, que chamo "cultura política".
Gostaria de sugerir que vale a pena observar comparativamente, em cada uma destas culturas políticas, três conceitos-chave: o conceito de revolução, o conceito de ordem social e o conceito de liberdade.

Dois gumes. Antes de prosseguir, devo no entanto sublinhar um esclarecimento que me parece fundamental. No argumento que vou apresentar referir-me-ei a estas duas culturas políticas como ideais-tipo, para usar a consagrada expressão de Max Weber. Não pretendo por isso subsumir toda a riqueza de cada uma daquelas culturas políticas nos traços vincados que vou utilizar. Pela mesma razão, não pretendo que todas as características da cultura política inglesa, ou anglo-americana, sejam positivas, nem que todas as da cultura política francesa sejam negativas.



Em boa verdade, como observou o meu amigo e mestre Seymour Martin Lipset, recentemente falecido, seria possível encontrar contrapartidas negativas para quase todos os traços positivos da cultura política anglo-americana [American Exceptionalism: A Double-Edged Sword, Nova Iorque/Londres: Norton, 1996].


Se ela tem, no entanto, uma vantagem conclusiva, esta reside na recusa da utopia e no reconhecimento da imperfeição inerente a todo o empreendimento humano. Gostaria por isso que o meu argumento, certamente elogioso para a cultura política anglo-americana, fosse interpretado no quadro falibilista que ela tanto ajudou a fomentar.

Revolução? Começando pelo primeiro conceito-chave, o de revolução, eu diria que ele talvez exprima de forma mais patente a diferença entre as duas culturas políticas.
Na tradição francesa, a ideia de revolução está associada a mudança, a progresso, a abertura de espírito. Isso não significa, obviamente, que todas as revoluções mereçam a aprovação de todas as pessoas; mas significa que o ónus da prova recaia sobre aqueles que são contra uma determinada revolução - e que estes, ao tentarem criticar uma dada revolução, estão desde logo numa posição defensiva. Em França fala-se de revolução como sinónimo de progresso: revolução no conhecimento científico, revolução nas artes, nos costumes, na tecnologia, na economia.
É mesmo provável que a expressão "Revolução Industrial", inicialmente aplicado a Inglaterra, seja de origem francesa. Na verdade, não houve nenhuma "Revolução Industrial" em Inglaterra: houve apenas um longo processo de modernização económica, tecnológica e social, que deu origem ao que chamamos sociedade industrial. Mas essa transformação foi apenas um agregado de inúmeras transformações graduais, descentralizadas e não centralmente dirigidas, cuja génese pode aliás nem ter estado na chamada burguesia, mas na própria aristocracia que iniciou a intensificação da exploração agrícola. Os estudos mais recentes apontam mesmo para as origens medievais e católicas do capitalismo ocidental.

Edmund Burke. Em Inglaterra, com efeito, o termo "revolução" é muito pouco utilizado e raramente com conotação positiva. Talvez um dos grandes responsáveis por este facto tenha sido Edmund Burke, o grande parlamentar whig irlandês que é dado como fundador do conservadorismo moderno, mas que, em Inglaterra, reúne a admiração de grandes figuras da direita e da esquerda.
O percurso de Edmund Burke foi ele próprio muito difícil de qualificar politicamente. Tendo sido considerado o líder intelectual do partido whig (que poderíamos designar como liberal, no sentido de que se opunha aos Tories, os conservadores), Burke destacou-se como defensor dos colonos americanos, dos direitos dos católicos irlandeses, e como severo crítico da administração inglesa na Índia, acusando-a de desrespeitar os direitos dos povos nativos. Mais do que isso, Burke foi um crítico acérrimo do que designou por governo de corte do rei George III, e um dos primeiros teorizadores do papel dos partidos políticos parlamentares modernos, um dos quais deveria sustentar o governo e o outro a oposição.
Só que, em 1789, quando todos esperavam que Burke desse o seu apoio à Revolução Francesa, como se inclinavam a fazer os seus pares liberais, ele desencadeou contra ela uma crítica feroz que ainda hoje constitui um clássico do pensamento político, as célebres "Reflexões sobre a Revolução em França", publicadas em 1790.

Arcaísmo revolucionário. A crítica de Burke à Revolução Francesa não é feita do ponto de vista da defesa do Antigo Regime ou do absolutismo real - o que seria impossível, dado Burke ter sido sempre um defensor do Parlamento e da limitação do poder político.
Burke criticou a Revolução Francesa por ela querer instaurar um novo absolutismo, ainda mais ilimitado que o anterior. E, sobretudo, criticou a ideia de revolução redentora em termos extraordinariamente modernos: observou que todas as acções políticas provocam efeitos não intencionais e não previsíveis; disse que todos os planos centrais, designadamente os planos de mudança social, falham por não conhecerem a sabedoria descentralizada inerente aos pequenos pelotões e à vida local.
Por outras palavras, Burke descredibilizou a própria ideia de revolução. Fê-lo, não do ponto de vista de manter tudo como está, mas do ponto de vista da maior inteligência da mudança gradual, descentralizada, por ensaio e erro. E foi aqui, na capacidade para adoptar a mudança gradual por ensaio e erro, que Burke situou a superioridade do regime parlamentar inglês.

Revolução relutante. Esta ideia da superioridade da mudança gradual relativamente à mudança revolucionária passou a fazer parte do património comum daquilo que designei por cultura política inglesa.
De forma imperceptível, esta ideia foi adoptada pela república americana, ainda que esta tenha sido aparentemente fundada por uma revolução. Só que - tal como na Inglaterra de 1688, e ao contrário da França de 1789 - a revolução americana de 1776 foi uma revolução relutante. Foi uma revolução liberal, sem dúvida, mas também conservadora, por comparação com a francesa. Visou restaurar liberdades e garantias constitucionais ancestrais, e não delinear uma nova sociedade a partir do zero.

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