segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Eutanásia e vidas sem valor


Lido no Público

Pedro Vaz Patto
Aceitando a eutanásia, o Estado afirma que a dignidade da vida humana pode perder-se em situações de doençaEstá em discussão na Bélgica um projecto de lei que estende a descriminalização e legalização da eutanásia a situações em que não há um pedido consciente e explícito da pessoa em causa: crianças e doentes mentais graves. O projecto pretende instituir uma prática já aceite nos tribunais da vizinha Holanda (onde essas situações não são objecto de procedimento criminal, com a invocação de razões de oportunidade), embora aí ainda não consagrada legislativamente.
Este passo no sentido da extensão da licitude da eutanásia suscita duas reflexões.
Por um lado, confirmam-se os temores de que uma qualquer brecha no princípio da inviolabilidade da vida humana conduza a um risco de derrocada, leve a que se sigam ulteriores e mais graves violações desse princípio, segundo a conhecida imagem da rampa deslizante.
Por outro lado, torna-se mais evidente que na eutanásia, ao contrário do que afirmam normalmente os partidários da sua legalização, não está em jogo apenas o respeito pela autonomia da pessoa ou uma postura de neutralidade do Estado e da ordem jurídica face às opções de cada pessoa sobre o sentido e valor da sua própria vida. Com a eutanásia, o Estado e a ordem jurídica afirmam o desvalor de determinadas vidas humanas, afirmam que a dignidade da vida humana não é uma sua qualidade intrínseca, que nunca se perde, mas antes que essa dignidade pode perder-se em situações de doença e dependência.
Face a um pedido explícito de morte, nenhuma ordem jurídica aceita indistintamente a licitude do homicídio a pedido, nem o auxílio ao suicídio. As que aceitam a licitude da eutanásia voluntária, fazem-no não apenas em atenção ao valor da autonomia pessoal (se assim fosse, aceitariam sempre o homicídio a pedido e o auxílio ao suicídio), mas também porque (neste aspecto, não pode dizer-se que são neutras) reconhecem o desvalor da vida humana marcada pela doença.
Com a legalização da eutanásia, não é apenas o princípio da inviolabilidade da vida humana que se sacrifica diante do respeito pela autonomia (o que já é incongruente, porque o respeito pela autonomia supõe o respeito pela vida, raiz da própria autonomia: só quem está vivo pode ser livre), é também o princípio da igual dignidade de todas as vidas humanas, e da vida humana em todas suas fases, que se sacrifica.
E isto torna-se ainda mais evidente perante este projecto, que consagra a licitude da eutanásia na ausência de um pedido explícito e consciente. Já não pode falar-se, aqui, em eutanásia voluntária, nem em respeito pela autonomia. Como já alguém escreveu, "cai a máscara da eutanásia" como sinal de respeito pela autonomia. Torna-se nítido, antes, que ela é expressão da ideia de que há vidas desprovidas de valor e dignidade (exactamente como se dizia na legislação nazi sobre eutanásia). Vidas que são um fardo para a sociedade - a mensagem não pode deixar de ser assim entendida.
É certo que se diz ser o próprio bem das pessoas em causa a justificar a eutanásia. Mas a vida é o bem que é pressuposto de todos os bens terrenos. E é óbvio que não é com a eutanásia que se combate ou alivia a doença ou o sofrimento. Com a eutanásia, desiste-se de combater ou aliviar a doença e o sofrimento, elimina-se, pura e simplesmente, a própria pessoa doente e que sofre. Juiz

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