Lido no Público
A fraude maioritária
12.03.2009, Miguel Gaspar
Uma sondagem britânica recente concluiu que a maioria das pessoas mente quando fala de livros. Dizer-se que se leu o que não se leu por vontade de armar ao pingarelho ou para não ser apanhado em falso é um pecado partilhado por dois terços da humanidade. Uma maioria qualificada, portanto, prefere a mentira à verdade. Não deveríamos ficar demasiado espantados. Afinal de contas, não há nenhuma relação entre a literatura e a verdade. Assim sendo, porque teria de existir uma relação de verdade entre os livros e os leitores? Se, escrevia Pessoa, o poeta é um fingidor, dê-se ao leitor o direito a fingir sem que lhe doa.
O mais interessante nesta fraude maioritária é constatar que tem um nível muito aceitável a lista dos dez livros que mais gente diz ter lido mas de facto não leu. Não será surpresa, mas, bem vistas as coisas, isso até abona a favor de quem diz que lê, mas não lê.
Li esta notícia por acaso num jornal irlandês, que puxava para título o facto de o livro Ulysses, de James Joyce, aparecer em terceiro lugar nesta lista dos mais não lidos de sempre. Havia um paradoxal orgulho patriótico na notícia de que Joyce não é lido: a confirmação de que, além de ser indiscutivelmente reconhecida como uma das obras-chave da literatura do século passado, Ulysses é também uma das obras que mais pessoas gostavam de ter lido, se não fosse tão grande a maçada de ter de o ler. Ser um dos mais não lidos de sempre não é a mesma coisa do que ser um dos menos lidos de sempre.
É o 1984, de George Orwell, que encabeça esta tabela dos mais não lidos de sempre, o que nos permite questionar a honestidade dos critérios dos não leitores. Admite-se que um não leitor diga ter lido sem o ter feito livros cuja relevância para a humanidade possa ser também medida através do critério fisicalista do quilo. Não, não me estou a referir aos Actos Notariais do Advogado, o terceiro mais lido da livraria Almedina (328 páginas, 0,51 quilos de peso, confirma o site). Mas por exemplo ao Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust (oitavo mais não lido), à Bíblia (esse mesmo: quarto mais não lido) ou à Guerra e Paz de Tolstoi (segundo mais não lido), o romance que Woody Allen garantiu ter lido em 20 minutos: "Tirei um curso de leitura rápida e li a Guerra em Paz em 20 minutos. Sei que tem a ver com a Rússia." Obras pesadas como esta, sim, são obras que merecem ser não lidas. O argumento de Woody Allen é pertinente: se a maioria de não leitores de facto lesse, haveria o risco de dois terços da humanidade não ter compreendido a Bíblia ou o Ulysses. De saberem que um tem a ver com Jesus e o outro com Molly Bloom. É o que acontece quando se lê sem saber o que se está a ler.
Se compararmos a tabela do que não é lido com a tabela do que é lido, vemos como o que não se lê é melhor do o que efectivamente se lê. Consultando, por exemplo, a tabela dos mais lidos na Amazon (actualizada hora a hora), não encontramos por lá obras-primas da literatura. Aliás, mal encontramos literatura. Encontramos bandas desenhadas, auto-ajuda, histórias de vampiros ou a saga de um sujeito que foi sexualmente abusado por uma tribo de canibais (mas sobreviveu para contar).
O top ten dos não lidos inclui ainda Gustave Flaubert e Salman Rushdie. E, se não fosse aparecer por lá um livro de divulgação científica de Stephen Hawking ou a biografia de Barack Obama, seria possível reconstruir uma variante ao Cânone Ocidental, de Harold Bloom, sem ser preciso gastar tempo a ler uma única linha - um cânone de lombada.
Um não leitor sabe distinguir as obras que contam das que não contam. E, prudentemente, evita ler as que contam. As maiorias são mais sábias do que parecem. Mesmo (ou sobretudo) quando estão a mentir. Jornalista
miguel.gaspar@publico.pt
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