sábado, 26 de setembro de 2009

Winston Churchill e o "mistério inglês", Ensaio, João Carlos Espada



No centro do espírito inglês está a felicidade, uma fonte profunda de contentamento com a vida, o que explica o mais profundo desejo do inglês, o de ser deixado em paz, e a sua vontade de deixar os outros em paz desde que eles não perturbem o seu repouso
A chamada "questão social" dominou os ataques às democracias ocidentais durante as décadas de 1920 e 1930. Era o tema dominante da propaganda nazi e comunista contra o chamado "capitalismo". Winston Churchill nunca se deixou impressionar por esses ataques. Em boa verdade, Churchill era extremamente sensível às condições sociais dos pobres. E aliava esta preocupação social à defesa intransigente da economia de mercado e do comércio livre.

MUDANÇA DE PARTIDO As questões da reforma social e do comércio livre - a que os conservadores se opunham - levariam Churchill a abandonar o Partido Conservador e a juntar-se aos liberais em 1904. Nos anos que se seguiram, como membro de governos liberais, Churchill promoveu várias reformas sociais importantes que atraíram a atenção de dois dirigentes socialistas da Fabian Society, o famoso casal Sydney e Beatrice Webb. "Um dos grandes acontecimentos dos últimos dois anos", escreve Beatrice Webb no seu diário em 1910, "é que Lloyd George e Winston Churchill praticamente eclipsaram não só os seus próprios colegas mas o próprio Partido Trabalhista. Destacam-se como os mais avançados políticos." E manifestou até o receio de alguns jovens membros da Fabian Society virem a "tornar--se adeptos destes dois dirigentes radicais".

NÍVEL MÍNIMO Churchill, no entanto, não tinha nada em comum com a ideologia do casal Webb, que advogava a igualdade e o controlo estatal. Churchill defendia que se devia garantir um nível de vida mínimo, e não que se devia promover a igualdade. Falando em Glasgow no Outono de 1906, Churchill explica:
"Não quero retirar vigor à concorrência, mas há muito que podemos fazer para atenuar as consequências do fracasso. Queremos traçar uma linha abaixo da qual não permitiremos que as pessoas vivam e trabalhem, mas acima da qual poderão competir com toda a força da sua virilidade. Não queremos deitar abaixo a estrutura da ciência e da civilização - mas sim estender uma rede sobre o abismo."
Churchill chamava a esta rede sobre o abismo o "nível mínimo". Incluía "níveis mínimos de vida e de salário, de segurança contra a possibilidade de cair na ruína devido a um acidente, a uma doença ou à fragilidade de carácter". Seria uma rede de segurança promovida pelo Estado "por baixo (a um nível inferior) do enorme tecido desconjuntado de salvaguardas e seguros sociais que se formou por si em Inglaterra, mas não para o substituir".

PREMIAR O ESFORÇO Este sistema não devia, porém, desincentivar o trabalho esforçado, porque, como Churchill afirma:
"Não se deve ter pena de ninguém por ter de trabalhar esforçadamente, porque a natureza inventou uma recompensa especial para o homem que trabalha esforçadamente. Proporciona-lhe um contentamento adicional, que lhe permite obter num breve momento, com base em prazeres simples, uma satisfação que o ocioso social procura em vão ao longo de vinte e quatro horas."

GOVERNO LIMITADO A principal razão pela qual Churchill se opunha ao comunismo e ao nazismo não era, fundamentalmente, uma questão de doutrina ideológica. Não contrapunha ao comunismo e ao nazismo uma doutrina sistemática rival. O que chocava Churchill era precisamente a ambição, tanto do nazismo como do comunismo, de reorganizar a vida social de cima para baixo, impondo aos modos de vida existentes um plano dedutivo baseado numa ideologia total. No cabo Hitler, no ex-socialista Mussolini e nos ideólogos comunistas Lenine, Trotsky e Estaline, Churchill via o fanatismo grosseiro de homens que queriam demolir todas as barreiras ao exercício irrestrito da sua vontade: as barreiras do governo constitucional, da religião judaico-cristã, do cavalheirismo, das liberdades civis, políticas e económicas, da propriedade privada, da família e de outras instituições descentralizadas da sociedade civil.

TESTE À LIBERDADE Numa mensagem dirigida ao povo italiano em 1944, Churchill apresentou sete "maneiras práticas, bastante simples" de reconhecer a liberdade no mundo moderno:
"Existe liberdade de expressão de opiniões e de oposição e crítica ao governo que se en- contra no poder?
Os cidadãos têm o direito de destituir um governo que considerem censurável e estão previstos meios constitucionais de manifestarem a sua vontade?
Existem tribunais que estão ao abrigo de violência por parte do executivo ou de ameaças de violência popular e sem nenhumas ligações com partidos políticos específicos?
Poderão esses tribunais aplicar leis claras e bem estabelecidas que estão associadas, na mente das pessoas, ao princípio geral da dignidade e da justiça?
Há equidade para pobres e para ricos, para os cidadãos comuns e para os detentores de cargos públicos?
Existe a garantia de que os direitos dos indivíduos, ressalvadas as suas obrigações para com o Estado, serão mantidos, afirmados e enaltecidos?
Está o simples camponês ou operário, que ganha a vida trabalhando e lutando diariamente para sustentar a sua família, livre do receio de que uma qualquer organização policial sinistra controlada por um partido único, como a Gestapo, criada pelos partidos nazi e fascista, lhe bata à porta e o leve para a prisão ou para ser sujeito a maus-tratos sem um julgamento justo e público?"

Esta longa citação mostra que a questão crucial para Churchill, como para a centenária tradição inglesa da liberdade exercida sob a lei, era que o poder político não deve prevalecer sobre os modos de vida reais e descentralizados das pessoas.
O espírito inglês Churchill exprimiu esta atitude de forma particularmente viva ao recordar a filosofia política de Sir Francis Mowatt, um alto funcionário público que servira tanto Gladstone como Diasraeli, os dois líderes rivais da Inglaterra vitoriana:
"Ele representava a completa visão vitoriana triunfante da economia e das finanças: estrita parcimónia; contabilidade exacta; comércio livre, independentemente do que o resto do mundo pudesse fazer; governo suave e firme; evitar as guerras; apenas pagamento das dívidas, redução dos impostos e poupança; quanto ao resto - ao comércio, à indústria, à agricultura, à vida social - laissez-faire e laissez-aller. Deixemos que o governo se reduza e reduza as suas exigências sobre o público ao mínimo; deixemos que a nação viva de si própria; deixemos que a organização social e industrial tome o curso que quiser, sujeita às leis da terra e aos dez mandamentos. Deixemos que o dinheiro frutifique nos bolsos das pessoas."
Neste sentido, Winston Churchill era fundamentalmente um intérprete e um herdeiro daquilo que o historiador A. L. Rowse denominava "o espírito inglês". A principal característica deste espírito é a ausência de Angst ou de ennui.
"No centro do espírito inglês está a felicidade, uma fonte profunda de contentamento com a vida, o que explica o mais profundo desejo do inglês, o de ser deixado em paz, e a sua vontade de deixar os outros em paz desde que eles não perturbem o seu repouso."

DISPOSIÇÃO PARA USUFRUIR Como disseram Bagehot e Oakeshott, trata-se de uma disposição para usufruir, um sentimento interior de felicidade, de celebração da vida. Trata-se da consciência de que é um privilégio poder usufruir de um modo de vida próprio, que nos é familiar e que não foi imposto do exterior. É uma atitude de cepticismo em relação a aventuras políticas, a modas intelectuais e a todo e qualquer especialista que afirme saber organizar melhor a nossa educação, a nossa cultura e a nossa vida espiritual. Em resumo, é uma disposição para desfrutar a liberdade - e para defendê-la a todo o custo.

CORRENTE DE OURO Esta disposição para usufruir a liberdade não nasceu em Inglaterra com o iluminismo ou com a Revolução Francesa de 1789. É uma disposição ancestral que, no plano político, remonta pelo menos à Magna Carta, de 1215. No plano cultural está expressa no mandamento cristão de "dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus". Churchill resumiu esta ideia quando apresentou a filosofia política de seu pai, Lorde Randolph Churchill, um destacado parlamentar conservador. Disse Churchill sobre seu pai:
"[Lorde Randolph Churchill] não via razão para que as velhas glórias da Igreja e do Estado, do rei e do país, não pudessem ser reconciliadas com a democracia moderna; ou por que razão as massas do povo trabalhador não pudessem tornar-se os maiores defensores destas antigas instituições através das quais tinham adquirido as suas liberdades e o seu progresso. É esta união do passado e do presente, da tradição e do progresso, esta corrente de ouro [golden chain], nunca até agora quebrada, porque nenhuma pressão indevida foi exercida sobre ela, que tem constituído o mérito peculiar e a qualidade soberana da vida nacional inglesa."
Por outras palavras, nesta corrente de ouro reside a chave do mistério inglês a que dedicámos estes ensaios.

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