sábado, 26 de setembro de 2009

Gaula 500 anos - rural ou urbana?, Júlia Caré

O movimento do necessário progresso terá de fazer-se da agricultura para a urbanização?


"Sou de Gaula, você que se importa?" Elucidário Madeirense A freguesia de Gaula comemorou 500 anos de existência, no passado dia 13 de Setembro. Um facto a ser aproveitado para uma reflexão sobre a terra, as suas gentes e para constatar as alterações profundas ocorridas nos últimos trinta a quarenta anos, num movimento acelerado de mudança, após séculos de lenta transformação, quase imobilismo num "modus vivendi" caracterizado pela forte ligação às actividades agrícolas, artesanato doméstico e pequeno comércio como formas de sobrevivência. Uma ocasião para lembrar vultos notáveis e famílias hoje desaparecidas da cena gaulesa, levadas pelo passar do tempo e a saga da emigração. Recordar modos de ser e de estar, relações de convívio e vizinhança, de partilha e entreajuda, referenciais de ruralidade, feita de vivências, sabores, odores, hoje caídos em desuso. Assuntos tratados pelos meus distintos conterrâneos, senhor Lourenço Freitas e o saudoso Padre Alfredo Vieira de Freitas, nos seus escritos sobre as gentes e a história de Gaula. Em tempo de aniversário da terra que nos viu nascer, é inevitável a nostalgia dos tempos da infância, passada neste espaço de liberdade anárquica, como é o viver no campo. Uma ruralidade hoje em progressiva extinção, quando o amanho da terra, desde a sementeira à colheita ocupava a totalidade das gentes, adultos e crianças, de sol a sol, num conjunto de rituais de que dependia a sobrevivência, hoje já desaparecidos no processo natural e dinâmico de mudança proveniente das transformações sociais e económicas, no contínuo evoluir do progresso dos povos.

Trabalhava-se a terra desde a beira-mar ao Pico, desde a Achada até ao vale da ribeira (do Porto Novo), a chamada "Rocha", tornada solo arável à custa da labuta e do esforço de gerações, descendo e subindo por sinuosas veredas talhadas por pés descalços e botas chãs, de cargas às costas e gotas de suor, hoje desaparecidas sob os silvados e carquejas, porque as gentes mais recentes enveredaram por outros caminhos mais suaves de ganhar o pão. Quem não tinha terreno seu, fazia por arrendar um bocado de terra onde plantar um pé de couve, o milho de cada dia, porque a sobrevivência estava dependente das batatas e semilhas no canto da casa e da carne de porco na cartola e a produção agrícola era a moeda de troca, para se poder ir à "venda" buscar o indispensável sal, o escasso açúcar, o medido azeite e o luminoso petróleo. Mas hoje, o amanho agrícola em generosas plantações de produtos hortícolas, está progressivamente a ser substituído por uma outra forma de trabalhar e rentabilizar a terra, entretanto abandonada aos silvados, carquejas e incêndios periódicos: a construção de urbanizações que progressivamente vão subindo, das Lajes às Levadas, da Lombadinha à Contenda, rumo à Achada, ocupando nobre e precioso solo arável, laboriosamente conquistado à rocha pelos nossos antepassados, aprisionado em poios à custa de muito esforço e trabalho árduo, durante séculos vestido do verde de uma agricultura necessária à sobrevivência. Hortas de betão? E outro ponto se coloca à nossa reflexão sobre os 500 anos de Gaula: o movimento do necessário progresso rumo à modernidade terá de fazer-se da agricultura para a urbanização? É só este o caminho para todo o espaço rural situado na faixa sul da ilha, entre a Ribeira Brava e Machico? O melhor solo arável, os espaços rurais por excelência transformados em estaleiros de construção, em bairros habitacionais, dormitórios, subúrbios descaracterizados, sem identidade, sem história nem alma, numa "betonização" de todo o espaço campestre? É isto absolutamente necessário à nossa densidade populacional, à nossa oferta turística, ou seria possível fazê-lo de uma maneira mais ordenada, integrada, sustentada, respeitadora das identidades locais, da paisagem natural e de um melhor equilíbrio ambiental? Reconhece-se que hoje já não seria possível pensar a agricultura madeirense como antigamente, uma actividade feita de sacrifício, dedicação e hercúleo esforço braçal. Não há quem se lhe dedique como antes, em tempo e afecto. É trabalho árduo e nem sempre compensatório, na lógica da máxima rentabilização dos lucros. A exportação, para além do vinho e da residual banana, pertence à história. É caro pagar a quem cave, plante, monde, sache, regue, cuide, ame. Não compensa. O produto importado é mais barato. Contingências das regras da economia, do consumo e da acção política. É mais fácil ir comer às prateleiras dos supermercados que proliferam. Por outro lado, a construção civil, a especulação imobiliária, o lucro fácil e imediato assumem posição de charneira na actividade económica. Novos referenciais de ruralidade para os próximos 500 anos?.

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