terça-feira, 21 de julho de 2009
Em memória de Palma Inácio, Mário Soares (vale a pena a ler, sobretudo aos jovens)
Foi uma notícia muito dolorosa, apesar de esperada, a morte de Hermínio da Palma Inácio. Éramos amigos muito próximos - e camaradas - há dezenas de anos. Foi um herói, um verdadeiro mito, da resistência ao salazarismo. Morreu pobre, desinteressado de bens materiais, ao cabo de longa doença, ajudado pelos amigos, que já mal conhecia.
Ouvi falar dele, pela primeira vez, quando do golpe frustrado, contra o salazarismo, de Abril de 1947, em que meu Pai também esteve envolvido. O célebre capitão Queiroga revoltou, no Porto, um regimento de carros de combate e, por falharem os apoios locais, dirigiu-se para o Sul, até à Mealhada, onde teve de se render. Palma, então cabo da Força Aérea, mecânico e piloto, sabotou os aviões da base de Tires, como se comprometera.
Foram os únicos que cumpriram. Preso, torturado e transferido depois para a Cadeia do Aljube, conseguiu fugir, o que parecia impossível. Foi um feito de extrema audácia, de que ouvi falar, com admiração, quando estive preso, com outros camaradas, nessa mesma cadeia, todos militantes do MUD Juvenil.
Mais tarde, soube que Palma Inácio, depois da fuga, se refugiara na casa de um proprietário rural, do Reguengo do Fetal, perto de Leiria, Cacela e Cunha, velho amigo de meu Pai, republicano, maçom e, depois do 25 de Abril, socialista.
Planeou sair por Leixões, do refúgio onde esteve alguns meses, clandestinamente, num barco de carga que o contratou para trabalhos humildes, em troca de comida e o levou, por caminhos vários, até ao Japão e, depois, à América. Uma enorme aventura! Quase um ano embarcado, conseguiu, embora sem passaporte, desembarcar. A referência que tinha na América era de um velho republicano, João Camoesas, exilado desde o começo da ditadura. Foi ele que lhe valeu e lhe arranjou o primeiro emprego: piloto de aviões de recreio, mecânico e instrutor de pilotos amadores.
Palma Inácio tinha uma excepcional habilidade manual: fabricava passaportes na perfeição e concertava velhos carros e aviões... Ficou alguns anos na América, onde conseguiu amealhar algum pecúlio e ter uma vida desafogada. Fez bastantes amigos, portugueses e americanos. Mas foi denunciado por um deles. A embaixada portuguesa pediu a extradição de Palma para Portugal. A América recusou. Mas exigiu que saísse do território americano. Refugiou--se, assim, no Brasil democrático de então (no Rio) onde foi acolhido pelos emigrantes políticos portugueses: o coronel Pio e o comandante Jaime de Morais, resistentes de grande prestígio junto das autoridades brasileiras. Foi um pouco mais tarde que conheceu Henrique Galvão e o general Humberto Delgado.
Palma Inácio estava então a meio da vida. Era um homem elegante, bem parecido, com um ar de gentleman farmer, requestado pelas brasileiras e bem instalado na vida...
No entanto, o rapto do Santa Maria, que seguiu de perto, levou-o de novo à conspiração política. Largou tudo e, com alguns amigos, resolveu ir para Marrocos, onde desviou um avião da TAP, que sobrevoou Lisboa e deixou cair manifestos denunciando mais uma das farsas eleitorais, organizadas por Salazar. Expulso de Marrocos, refugiou-se em França, onde planeou o assalto ao Banco de Portugal, na Figueira da Foz - que foi um sucesso imenso - para obter fundos para a Revolução. Criou a Luar, uma organização revolucionária para derrubar o regime. Pouco tempo depois foi preso de novo.
Foi, nessa altura, que o conheci, tinha eu acabado de regressar da deportação em São Tomé. Uma irmã de Palma, casada com um inglês, procurou-me no escritório e transmitiu-me o seu desejo de que eu fosse seu advogado. Foi já nessa qualidade que o visitei na prisão de Caxias e o vi pela primeira vez. Perguntei-lhe como queria que organizasse a defesa. Respondeu-me, com um sorriso: "Como entender, mas prolongue o meu julgamento até que chova a cântaros..." Percebi.
Entretanto, foi transferido para a Cadeia da PIDE, no Porto, porque o tribunal resolveu realizar o julgamento no Porto. Tive de substabelecer a procuração no meu amigo e colega Mário Cal Brandão. Transmiti-lhe a mensagem. O julgamento prolongou-se com incidentes que se sucediam. Até que choveu. Palma, nessa madrugada, fugiu da PIDE do Porto, feito julgado inédito e impossível, que espantou toda a gente.
Na manhã seguinte, estava a preparar a tese que apresentei ao II Congresso Republicano de Aveiro, quando recebi um telefonema enigmático do meu escritório a dizer que estava lá um senhor que precisava urgentemente de me falar. Desconfiei do que se tratava. Pedi-lhe que viesse a minha casa. A minha mulher preveniu-me: "Cuidado, é uma armadilha da PIDE para te prender de novo." De facto, a televisão da noite anterior tinha dado, com destaque, a notícia da fuga de Palma, com a fotografia dele, apresentado como um perigoso meliante, prometendo uma grande recompensa para quem o tivesse visto e indicasse o seu paradeiro.
Quando chegou o emissário, que nunca tinha visto, percebi, pelo nervosismo e medo que demonstrava, que não era uma armadilha. Disse-me ser primo do Palma, o qual o tinha procurado, antes de entrar para o trabalho, pedindo-lhe que me pedisse dinheiro, porque não sabia onde se meter nem como se alimentar. Perguntei-lhe onde o deixara e disse-me: num vão de escada de um prédio velho da Rua da Palma. Não hesitei: resolvi ir buscá-lo. Fomos os dois, eu a guiar. Dei voltas para ver se estava a ser seguido. Certifiquei-me que não.
Encontrei o Palma no sítio indicado. Estava num estado lastimável: molhado até aos ossos, vestido com umas calças de ganga e uma camisa à pescador, com a barba de dois dias, esfomeado. Instalei- -o no meu carro, despachei o primo, começámos a circular em direcção à estrada Marginal, sem saber ao certo ainda para onde o iria deixar. Para uma pensão, mal afamada, como ele queria, seria correr um risco tremendo. Seria preso em pouco tempo. Lembrei-me então do meu amigo José Fernandes Fafe, que habitava, com a família, em Cascais, numa moradia isolada. Para aí me dirigi. A meio do caminho, precisamente em Carcavelos, havia uma brigada de trânsito a mandar parar os carros. Perguntei-lhe: que fazemos? Respondeu: não pare! Fiquei indeciso, aflito. Felizmente, não nos mandaram parar. Respirámos de alívio!
Em casa do Fafe entrei sozinho. Estava a almoçar tranquilamente com a família. Mas percebeu, pela minha cara, que alguma coisa de grave se passava. Disse-lhe de imediato: "Trago-te uma encomenda que deixei no carro. Posso mandá-la subir? São dois dias, não mais..." Respondeu-me: "Não tenho coragem para te dizer que não." Fi-lo subir e voltei para Lisboa. Disseram-me depois que ninguém mais almoçou. Senão ele. E, depois, deitou-se e dormiu até ao dia seguinte.
Entretanto, a minha mulher arranjou um fato meu e roupa, tirou-lhes todos os indícios que me pudessem referenciar. Foi Catanho de Menezes, querido amigo, que levou a roupa a casa do Fafe. Mas arranjar-lhe um outro poiso foi mais difícil. Houve várias recusas. Finalmente o Fernando Oneto lembrou-se que o irmão do David Mourão Ferreira, o Jaime, tinha um pequeno apartamento, perto da penitenciária, onde tinha encontros galantes. Foi para aí que o Oneto levou o Palma, onde esteve quase um mês. Ainda lá o fui ver uma vez, antes do Oneto o levar para perto da fronteira de Elvas, onde passou "a salto", pelo caminho dos contrabandistas e entrou clandestinamente em Espanha. Do lado de lá, estava Oneto à espera dele e, ambos, se dirigiram a Madrid, eufóricos...
Lembraram-se então de ir visitar um advogado que Oneto conhecia por meu intermédio, quando do caso Delgado, extremamente simpático, de seu nome Mariano Robles Romero-Robledo. O escritório estava vigiado pela polícia espanhola, que prendeu o Palma. Passou cerca de um ano em Carabanchel, a terrível prisão política do franquismo. A justiça portuguesa, que o considerava um preso comum (não político) pediu a extradição de Palma. Quem o defendeu, a meu pedido, foi o depois embaixador de Espanha em Lisboa, Raul Morodo, que impediu a extradição. O então vice-presidente do Governo Italiano, Neni, oficiou ao Governo espanhol afirmando tratar-se de um preso político e que a Itália estava disposta a dar-lhe asilo político. Assim aconteceu.
Voltei a encontrar Palma Inácio, em Paris, estava eu já exilado e ele clandestino, em França. No entanto, era sócio de um clube chique de aviação onde alugava regularmente um bimotor para se treinar e dar umas voltas sobre Paris. Levou-me um dia com ele, quando planeava realizar uma operação sobre Lisboa...
Ainda em Paris, apareceu-me uma noite o Adolfo Ayala, a dizer que o Palma tinha sido preso na Alemanha, por ter tido um desastre, quando trazia o carro cheio de armas compradas na Checoslováquia. Para além das armas, todos os documentos eram falsos. Foi Willy Brandt, então Chanceler, a quem recorri para o conseguir safar. Não foi nada fácil.
Foi depois disso que reentrou em Portugal e foi preso de novo na Covilhã, quando tinha planeado, com outros, dominar a cidade, por algumas horas. A "operação" não chegou a realizar-se. Foi encarcerado em Caxias, donde só saiu em 26 de Abril de 1974, depois da Revolução dos Cravos.
Palma Inácio ainda manteve uns tempos a Luar, como organização política. Mas não fazia sentido, uma vez conquistada a liberdade. Assim o reconheceu o próprio Palma, passado o "Verão quente". Foi então que se inscreveu no Partido Socialista. Mas não foi fácil, apesar de ter o meu patrocínio, na altura secretário-geral.
Foi um militante activo e sempre discreto e cumpridor. Foi deputado pelo PS em duas legislaturas e membro da Assembleia Legislativa do Concelho de Lisboa.
Palma Inácio nunca foi um homem político, no sentido que se dá ao termo em democracia. Mas foi um homem com fortes convicções políticas e um militante activo e esforçado que lutou pelos seus ideais e pelas causas, que sempre foram as suas: a liberdade, a igualdade e a fraternidade. Um revolucionário activo, imaginativo, corajoso, consequente e pessoalmente desinteressado. Com um grande sentido da dignidade, da honradez política, modesto, mas, ao mesmo tempo, com consciência e orgulho do que fez ao serviço da Pátria, no tempo particularmente difícil em que viveu. C
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